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5 de dezembro de 2012

Um olhar de perto da revolução síria

Um anarquista entre jihadistas

Por um companheiro sírio

O que poderia, em alguma medida, explicar minha situação quando eu estava no interior dos “territórios liberados” da Síria, é que esses são territórios controlados pelo exército livre, as forças armadas da oposição Síria. Mas isso ainda não seria inteiramente verdadeiro. É verdade que nem todos os militantes do exército livre são jihadistas devotos, embora a maioria deles pensem, ou digam, que o que eles estão praticando é “Jihad”. A verdade é que há muita gente comum, mesmo ladrões, etc. entre eles, como em qualquer conflito armado. 

Minha primeira e última impressão quanto à situação corrente na Síria é que não há mais uma revolução população acontecendo lá; O que está tomando lugar no país é uma revolução armada que pode degenerar simplesmente para um conflito civil. O povo sírio, que mostrou coragem e determinação sem precedentes, nos primeiros meses da revolução, para derrotar o regime de Assad, apesar de toda sua brutalidade, está, agora, de fato exausto. Dezenove longos meses de feroz repressão e, recentemente, fome, escassez e contínuos bombardeios do exército do regime, está enfraquecendo seu espírito. Cinicamente, o beneficiário de tudo isso não foi o regime, mas a oposição, especialmente os islâmicos. Dependentes de sua relações internacionais, especialmente com os ricos governos despóticos do golfo pérsico, a oposição agora pode alimentar e apoiar a população faminta nas áreas controladas por suas forças. Sem esse apoio uma grave situação humanitária poderia estar tomando lugar.
Mas esse apoio não é fornecido de graça, nem pelos governantes do golfo, nem pelos líderes oposicionistas. Eles são, como qualquer outra força autoritária, solicitando a submissão e a obediência das massas. Isso, de fato, poderia apenas significar apenas a morte real da revolução síria como um corajoso ato popular das massas sírias. Sim, eu ajudei alguns jihadistas a sobreviver e outros a voltar ao combate, mas minha intenção real foi ajudar as massas às quais pertenço, primeiramente como médico, e, depois, como anarquista. 

Para dizer a verdade, não acho que nosso problema seja com o islã propriamente. O islã pode ser também igualitário, ou mesmo anárquico. Na história do islã houve estudiosos que reclamaram por uma sociedade muçulmana livre e sem estado, até por um universo livre sem qualquer tipo de autoridade. O problema com o que está acontecendo agora na Síria não é só o difícil e sangrento processo de superação de uma ditadura cruel, mas pode mesmo ser ainda pior: a substituição disto por outra ditadura, que pode ser pior e mais sangrenta. No começo da revolução, um pequeno número de pessoas, principalmente islâmicos devotos, reclamaram a representação das massas revoltosas e apontaram a eles mesmos como os verdadeiros revolucionários, a verdadeira representatividade da revolução. Isto foi contradito pela tendência predominante das massas e intelectuais revolucionários. Opusemos essa reivindicação autoritária e até falsa, mas fomos, e ainda somos, muito poucos para fazer alguma diferença real.
Essas pessoas defenderam que o que estava acontecendo era uma guerra religiosa, não uma mera revolução de massas oprimidas contra seus opressores. Usaram muito agressivamente o fato de que o opressor era de outra seita do islã, diferente da seita da maioria do povo que ele está explorando, uma seita que foi frequentemente julgada pelos sacerdotes sunitas no passado por ser contra o ensino do verdadeiro islã, o que é até pior do que não ser muçulmano. Ficamos chocados pelo fato de que a maioria dos xiitas, a seita do atual ditador, que são mais pobres e mais marginalizados do que a maioria sunita, deram apoio ao regime; e que participaram na brutal supressão das massas revoltas. Daí vem a “evidência” da “atual guerra religiosa” acontecendo entre sunitas e xiitas. Para elas, essas pessoas podem realmente estar reivindicando um real sunismo; elas são muçulmanas e tão sectárias que ninguém pode desafiá-las. De fato, eles construíam sua autoridade moral e espiritual antes do material.
Então, vem o apoio material dos governantes do golfo. Agora o potencial para qualquer luta popular real está caindo rapidamente; Síria é governada agora pelas armas; e só aqueles que as tem podem dizer algo sobre seu presente e futuro. E essa é a verdade não apenas para o regime de Assad e sua oposição islâmica. Em todo Oriente Médio as grandes esperanças estão desaparecendo rapidamente – Na Tunísia, Egito e onde quer que seja. Os islâmicos parecem ganhar todos os benefícios da corajosa luta das massas. E podem facilmente iniciar o processo de estabelecimento de suas leis fanáticas, com pouca oposição das massas. Posso sentir exatamente como Emma Goldman sentiu em 1922 quando ela rompeu com os bolcheviques e finalmente se desiludiu com suas regras. De fato, ninguém em todo mundo árabe e muçulmano parece mais próximo dos bolcheviques atualmente do que os islâmicos. Por muito tempo foram brutalmente reprimidos por ditaduras locais, usados para aterrorizar as massas no ocidente; e por causa disso podem ter parecido como se fossem a mais decisiva parte da oposição a essas ditaduras. Ao mesmo tempo, eles têm a mesma eficiente máquina de propaganda que os bolcheviques já tiveram. São tão agressivos e autoritários, quanto os bolcheviques foram durante os decisivos dias da Revolução de Outubro.  Então, parece lógico que os povos árabes optassem por tentar colocá-los no poder, ou aceitar sua subida até ele. Mesmo ansiar, como os operários e camponeses russos fizeram uma vez, que eles possam realmente criar um tipo diferente e melhor de sociedade, também parece lógico. No caso de Emma Goldman, ela despertou muito cedo dessa ilusão; para as massas, isso leva mais tempo. Ainda, Emma pensava, corretamente, em minha opinião: as massas estava muito certas para se levantar e tentar mudar sua realidade miserável, o grande “erro”, se isso pode ser descrito como um erro, foi feito pelas forças autoritárias que buscavam raptar a revolução. Nós apoiamos a revolução, não seus falsos “líderes”.

Construindo a alternativa libertária: propaganda e organização anarquista

A outra questão que penso ser importante para nós, anarquistas e massas árabes, é como construir a alternativa libertária: isto é, como iniciar uma propaganda libertária ou anarquista efetiva e como construir organizações libertárias. Para dizer a verdade, nunca tentei convencer ninguém a ser anarquista antes. Optei apenas pelo libre diálogo entre “iguais” com todo mundo. Nunca reivindiquei que sei tudo ou que qualquer anarquista ou qualquer outro ser humano mereça ser o “guia” ou o “líder” de outros, que ninguém merece estar na mesma posição que o Papa, imãs muçulmanos ou o secretário geral de qualquer partido leninista ou stalinista. Sempre pensei que tentar afetar outros é outro meio de praticar autoridade. Mas agora, vejo isso com outra perspectiva: isso é para fazer o anarquismo “disponível” ou conhecido para todos aqueles que querem lutar contra qualquer autoridade opressora de cuja repressão eles estão sofrendo; sejam eles operários, desempregados, estudantes, feministas, minorias étnicas, religiosas ou juventude, etc. isso é sobre tentar construir um exemplo ou amostra de uma nova vida livre no seio de uma organização libertária livre: não apenas como uma manifestação viva de sua presença potencial , mas também como um meio para alcançar essa sociedade.
Temos que fazer o anarquismo bem conhecido para todos os escravos e vítimas de todos os atuais sistemas supressivos e autoridades. EFETIVA PROPAGANDA ANARQUISTA é, penso, o primeiro objetivo de tais organizações. Em uma palavra, somos testemunhas da falência das “seculares“ tendências autoritárias (incluindo os nacionalistas e nacionalistas árabes, stalinistas e outras variedades de leninismo), e muito cedo a falência das religiões autoritárias. A alternativa futura deve ser, logicamente, libertária. Claro, o anarquismo não pode ser implantado artificalmente – deve ser um produto “natural” das lutas das massas locais. Mas ainda é necessário cuidado para ser devidamente realçado. Será, supostamente, o papel de nossa propaganda. Não haverá “centro” em nossa organização, nem burocracia, mas isso será esperado também de sua contraparte autoritária, até mesmo mais eficiente. Ainda Stalin ou Bonaparte não estão no poder, as massas sírias têm a oportunidade de obter um melhor resultado do que o da Revolução Russa. É verdade que isso tem se tornado mais difícil a cada minuto, mas a própria revolução já é um milagre, e nessa terra o oprimido pode cria seus milagres vez por vez. Dessa vez também, nós, anarquistas sírios, estamos botando todas nossas fichas e todos nossos esforços com as massas. Não pode haver outro caminho, ou não mereceríamos ser chamados de libertários.

Tradução: Rafael Martins da Costa, de Porto Alegre
http://www.desdiscursos.blogspot.pt/2012/11/um-olhar-de-perto-da-revolucao-siria.html

18 de outubro de 2012

Rebatendo oito objecções comuns ao anarquismo


Excerto de Anthropology and Anarchism: Their Elective Affinity, Brian Morris, 2005

De todas as filosofias políticas, o anarquismo é talvez a que teve uma pior imprensa. Foi ignorado, ridicularizado, abusado, mal-entendido e representado erroneamente por escritores de todas as partes do espectro político: marxistas, liberais, democratas e conservadores (Theodore Roosevelt, o presidente norte-americano, descreveu o anarquismo como "crime contra a raça humana"), e foi julgado como destrutivo, violento e niilista. Várias críticas foram lançadas contra o anarquismo. Tratarei brevemente cada uma delas. São oito objecções no total.

1. Diz-se que os anarquistas são demasiado inocentes, demasiado naive e têm uma ideia idílica da natureza humana. Diz-se que, como Rousseau, têm uma visão romântica da natureza humana como essencialmente boa e pacífica. Mas, certamente, os humanos não são assim na realidade; são cruéis, agressivos, egoístas, pelo que a anarquia é um sonho inalcansável. É uma visão irreal de uma passada idade dourada que nunca existiu. Deste modo, algum tipo de autoridade coerciva é sempre necessária. A verdade é que os anarquistas não seguem Rousseau. De facto, Bakunine foi muito crítico com os filósofos do século XVIII. Muitos anarquistas tendem a pensar que o ser humano tem tanto tendências boas como más. Se os humanos fossem só bondade e lucidez, importaria-lhes ser governados? O facto de que os anarquistas se opõem a todas as formas de autoridade coerciva  deve-se precisamente a terem uma visão realista, em vez de romântica, da natureza humana. No fundo, os anarquistas opõem-se a todo o poder no sentido da palavra francesa puissance ("poder sobre") - em vez de pouvoir ("poder para fazer algo") -, e crêem, como Lord Acton, que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Como Paul Goodman (1968) escreveu, a questão não é se as pessoas são "suficientemente boas" para um tipo particular de sociedade, mas sim de desenvolver o tipo de instituições sociais mais adequadas para expandir as nossas potencialidades de inteligência, honra, sociabilidade e liberdade.

2. A anarquia, crê-se, é sinónimo de caos e desordem. Este é, de facto, como as pessoas usam o termo. No entanto, a anarquia é entendida pelos anarquistas num sentido completamente oposto. Significa uma sociedade baseada na ordem. Anarquia não significa caos ou ausência de organização, mas uma sociedade baseada na autonomia do indivíduo, na cooperação e sem governantes e autoridade coerciva. Como Proudhon (1851) assinalou, a liberdade é a mãe da ordem. Não obstante, os anarquistas não denunciam o caos, porque vêm no caos e na desordem um potencial inerente; como disse Bakunin (1842) destruir é um acto criativo.

3. Existe outra equação entre anarquismo e violência. O anarquismo, segundo se diz, advoga as bombas terroristas e a violência. Há inclusive um livro nas livrarias intitulado The Anarchist Cookbook (O livro de cozinha anarquista) que descreve como fabricar bombas e dinamite. Mas, como Alexander Berkman escreveu, o recurso à violência contra a opressão ou para atingir determinados objectivos sempre existiu ao longo da história da humanidade. Actos de violência foram cometidos por seguidores de todos os credos políticos e religiosos: nacionalistas, liberais, socialistas, feministas, republicanos, monárquicos, budistas, muçulmanos, cristãos, democratas, conservadores, fascistas. E todos os governos estão baseados na violência organizada. Os anarquistas que recorreram à violência não são piores que os demais. Na verdade, a maior parte dos anarquistas se posicionaram contra a violência e o terrorismo, e sempre houve uma forte ligação entre o anarquismo e o pacifismo. Os anarquistas deram, inclusive, um passo mais ao denunciar a violência que a maioria não reconhece e que é sempre a pior possível: a violência legal. Não é necessário mencionar que alguns anarquistas mais conhecidos, como Tolstoi, De Cleyre, Gandhi e Edward Carpenter, eram pacifistas.

4. Os anarquistas foram acusados, especialmente pelos marxistas, de serem tolos teóricos, de serem anti-intelectuais e de criarem um culto absurdo à acção. Como estudioso do movimento anarquista indicarei que muitos anarquistas e pessoas com simpatias com o anarquismo estiveram entre os intelectuais mais destacados da sua geração, pessoas realmente criativas. Podemos mencionar Godwin, Humboldt, Reclus, Tolstoi, Bertrand Russell, Gandhi, Chomsky e Bookchin, entre outros. Além disso, os anarquistas produziram muitos textos básicos sublinhando a sua própria filosofia e as suas próprias doutrinas sociais. Estas estão geralmente livres do jargão e das pretensões académicas com que muitos liberais, marxistas e pós-modernistas se disfarçam.

5. Outra crítica é o oposto a isto: o anarquismo é por ser apolítico e ser uma doutrina inactiva. Os anarquistas, de acordo com o ex-dirigente do Partido Verde (Green Party of England and Wales), não fazem mais do que olhar para o seu umbigo. Porque não participam na vida política partidária, Porritt afirma, inclusive, que os anarquistas não vivem no "mundo real". Todos os temas essenciais do manifesto do Partido Verde - o apelo a uma sociedade descentralizada, igualitária, ecológica, cooperativa e com instituições flexíveis - são, desde logo, simplesmente uma apropriação sem reconhecimento do que anarquistas como Kropotkin haviam proposto há muito tempo. Mas para Porritt, esta visão restringe-se a uma política partidária. Como figura mediática, Porritt interpreta de maneira completamente errónea o que é o anarquismo - e, portanto, uma sociedade descentralizada. Este não promulga o retiro para a oração, a auto-indulgência ou a meditação, independentemente de que olhe para o seu umbigo ou cante mantras. É simplesmente hostil à política parlamentar ou de partidos. A única democracia que crê válida é a democracia participativa e considera pôr um X num papel a cada quatro ou cinco anos é simplesmente uma farsa, pois apenas serve para dar uma justificação ideológica aos ostentadores do poder numa sociedade que é fundamentalmente hierárquica e anti-democrática. Há anarquistas de muitos tipos. Sustentaram, portanto, várias formas de desafiar e transformar o sistema actual de violência e desigualdade - através de comunas, resistência passiva, sindicalismo, democracia municipal, insurreição, acção directa e educação. Uma das razões pela qual os anarquistas realçaram a publicação de propaganda e a educação é que sempre consideraram a organização dos partidos como violenta.  Os anarquistas foram sempre muito críticos da noção de partido vanguardista, por lhes parecer que leva obrigatoriamente a certo tipo de despotismo. E em relação às Revoluções Francesa e Russa, a história mostrou que as suas premonições eram correctas.

6. Uma crítica consistente ao anarquismo elaborada pelos marxistas é que é utópico e romântico: uma ideologia camponesa ou pequeno-burguesa, uma manifestação de sonhos milenaristas. Os estudos históricos de John Hart sobre o anarquismo e a classe operária mexicana (1978) e de Jerome Mintz sobre Los anarquistas de Casas Viejas em Espanha (1982) refutaram, de forma mais do que suficiente, alguns destes falsos preconceitos sobre o anarquismo. O movimento anarquista não ficou confinado ao campesinato: floresceu entre os trabalhadores urbanos onde o anarco-sindicalismo se desenvolveu. Tão pouco é utópico ou milenarista. Os anarquistas criaram colectividades reais e sempre foram muito críticos com a religião. Como as diversas obras de Reclus ou Berkman atestam, nenhum dos primeiros anarquistas esperava uma mudança imediata, ou cataclismo, através da "propaganda pelo acto", ou da "greve geral". Eles sabiam que seria um caminho longo.

7. Outra crítica ao anarquismo é que tem uma concepção muito estreita da política, que vê o Estado como a fonte de todo o mal, ignorando outros aspectos da vida económica e social. Esta é uma representação falsa do anarquismo que deriva parcialmente da forma como o anarquismo foi definido, e da tentativa dos historiadores marxistas de excluir o anarquismo do movimento socialista mais amplo. Mas quando examinamos os escritos de anarquistas clássicos como Kropotkin, Goldman, Malatesta e Tolstoi, assim como o carácter dos movimentos anarquistas em lugares como a Itália, México, Espanha e França, torna-se evidente que nunca existiu esta visão tão limitada. Sempre desafiou todas as formas de autoridade e exploração e foi tão crítico com o capitalismo e a religião como o foi com o Estado. Muitos anarquistas eram feministas, muitos lutaram contra o racismo e lutaram pela liberdade das crianças. A crítica ecológica e cultural ao capitalismo foi sempre uma dimensão importante dos escritos anarquistas. Por isso, as obras de Tolstoi, Reclus e Kropotkin são ainda actuais.

8. Uma última crítica ao anarquismo é que é pouco realista: a anarquia nunca funcionará. O socialista de mercado David Miller representa este ponto de vista no seu conhecido livro Anarchism (1984). A sua atitude face ao anarquismo é a de "cara ou coroa". Admite que existiram comunidades baseadas nos princípios anarco-comunistas, que inclusive obtiveram algum êxito inesperado. Contudo, afirma que devido à falta de apoio popular e à intervenção estatal e à repressão, sempre fracassaram. Por outro lado, argumenta que de nenhum modo as sociedades poderiam existir sem algum tipo de governo centralizado. Miller parece ignorar a longa existência do que Stanley Diamond (1974) chamou de "comunidades de parentesco" dentro, e frequentemente em oposição, dos sistemas estatais, e que redes comerciais existiram ao longo da história, incluindo entre os caçadores-recolectores, sem nenhum tipo de controle estatal. O Estado, de qualquer forma, é um fenómeno recente e a sua forma actual de Estado-nação tem tão só quinhentos anos de existência. As comunidades humanas existiram por muito tempo sem autoridade central ou coerciva. Se é possível a existência de uma sociedade tecnologicamente complexa sem autoridade não é uma questão fácil de responder. Tão pouco é uma questão que deva evitar-se. Muitos anarquistas crêem que a dita sociedade é possível, ainda que a tecnologia deva existir numa "escala humana". Os sistemas complexos existem na natureza sem que haja neles nenhum mecanismo de controlo. De facto, muitos teóricos globais contemporâneos começam a vislumbrar o panorama social libertário que pode emergir na era da tecnologia informática. Não é necessário dizer que, se Miller tivesse aplicado o mesmo critério pelo qual julga o anarquismo - justiça distributiva e bem-estar social - ao capitalismo e ao "comunismo" de Estado, então possivelmente haveria declarado esses sistemas pouco práticos e pouco realistas. Mas pelo menos Miller quer resgatar o anarquismo dos desperdícios da história, e ajudar-nos a conter os abusos de poder e a manter vivas as possibilidades de relação sociais livres.

22 de março de 2012

Sobre a democracia: A democracia e a sua usurpação (1ª parte)

Sumário

1 - Um contexto civilizacional para mudança urgente
2 - Estado não rima com democracia
3 - Exemplos democráticos na Antiguidade
      Ciro, o Grande, rei dos persas
      A democracia ateniense
4 - Factores de neutralização da participação democrática

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1        Um contexto civilizacional para mudança urgente

A representatividade de todos imputada a alguns, escolhidos por eleições é um princípio demasiado vago para ser aceite, levianamente, sem observação detalhada. A sua aceitação, nesses termos vagos é uma emboscada em que se quer fazer tropeçar a multidão para perpetuar o domínio de todos por uns poucos, fazendo crer aos incautos que esse domínio é benfazejo, tão natural quanto perene, a única forma de gestão da vida pública. E que, portanto, deve ser despreocupadamente consentido.

Esse paradigma, como todos, compreende uma dinâmica, resultante de interações várias, entre as quais:

  • a pressão de forças sociais excluídas do sistema de representação;

  • formas de racionalidade que tendem a forçar, se não a substituição desse paradigma por outro, pelo menos a sua contínua melhoria;

  • fórmulas defensivas ou mistificatórias conducentes à manutenção, no poder, de castas ou grupos sociais privilegiados.

Raramente se fala da dimensão temporal das fórmulas de representação actuais, sobretudo daquelas que vigoram no chamado Ocidente e mais ou menos seguidas ou impostas aos países do Sul, implicitamente considerados como bárbaros, com o dever de agradecida aceitação da superioridade civilizacional do Ocidente. Imposição essa, se necessário, através da fraude, do golpe de estado, do bombardeio ou do massacre, sempre e naturalmente, em nome do progresso.

Esse complexo civilizacional é uma herança do colonialismo, de se pretender, no Ocidente cristão, apontar a todos os povos uma obrigatória repetição de todos as experiências ocidentais, dadas como indiscutivelmente mais avançadas. Poucas décadas atrás - a título de exemplo - no império colonial português, os africanos eram segmentados entre assimilados (mais ou menos adoptantes da cultura do colonizador) e não assimilados, “selvagens” destinados à ação dos missionários empenhados na salvação das suas “almas”, do comerciante sequioso do produto do seu trabalho ou, dos militares, de mão pesada para impor a lei e o respeito pela bandeira aos recalcitrantes. Era o domínio dos três “M” na feliz expressão de René Dumont (le missionaire, le militaire, le marchand), o triunvirato essencial do domínio colonial.

Finalmente, os interesses estratégicos ocidentais e das suas multinacionais sabem que o modelo de representação ocidental tem grandes virtualidades na estabilização política e na agilização da exploração dos povos, em comparação com modelos autoritários e tiranias pessoais ou de cariz militar. No entanto, a geopolítica cava muitas brechas nesse modelo, por exemplo, com a aceitação da “democracia saudita” e a recusa do governo palestiniano saído de eleições sem mácula, com a legitimidade dada ao corrupto Karzai e a diabolização do regime iraniano, entre muitos outros exemplos.

2 - Estado não rima com democracia

O modelo de representação ocidental actual ainda não tem um tempo de vigência superior ao da democracia directa grega, onde a mesma funcionou, mormente em Atenas. Nos casos mais antigos, o modelo ocidental de representação remonta apenas à segunda metade do século XVIII e apresenta cada vez mais nódoas de casos notáveis de excepções e atropelos à democracia.

Mesmo nesse horizonte temporal, o modelo ocidental, até tempos relativamente recentes, admitia demasiadas limitações, para se considerar democrático. Na França de 1848 admitia-se apenas a existência de 200 000 eleitores numa população de 30 M e, em 1867, o recenseamento eleitoral abrangia apenas 30%  da população activa. No mesmo ano, o sufrágio para a totalidade dos homens foi introduzido no Norte da Alemanha, adotado na Itália em 1912 e, na Inglaterra, em 1918; curiosamente, o mesmo ano em que o sufrágio chegaria às mulheres, na Alemanha. Em Portugal, o voto feminino surge em 1956, com muitas limitações e a sua universalidade só chegou depois do 25 de Abril.

A deturpação democrática para ganhar aceitação junto da multidão recorre a fórmulas diversas, de que se citam adiante alguns exemplos.  A inscrição de um “in god we trust” impresso nas notas de dólar, revela que a Wall Street – conhecida pelos seus pios comportamentos - utiliza o apoio divino para que os mortais aceitem aqueles rectângulos de papel, essenciais à acumulação das fortunas. Na democrática Inglaterra, não é permitido que os jornais ingleses defendam a instauração da república no país; isto é, os ingleses são obrigados a conviver “forever and ever” com a suserania simbólica da rica família Windsor. Mais recentemente, os governos europeus ou as suas câmaras de ressonância, os parlamentos, aprovaram o tratado de Lisboa, intervenções militares várias, os PEC e planos de austeridade - que mais se assemelham a extorsões - sem qualquer  procedimento democrático de consulta.

6 de fevereiro de 2012

Anarquismo, ou o Movimento Revolucionário do Século XXI


Por David Graeber e Andrej Grubacic *

Está a tornar-se cada vez mais evidente que a era das revoluções não acabou. E está a tornar-se igualmente claro que o movimento revolucionário global do século XXI terá as suas origens não tanto na tradição marxista, ou mesmo na socialista num sentido restrito, mas na anarquista.

Em todo o lado, da Europa Oriental à Argentina, de Seattle a Bombaim, as ideias e princípios anarquistas geram novos sonhos e visões radicais. Muitas vezes os seus expoentes não se apelidam de "anarquistas". Há uma série de outros nomes: autonomismo, anti-autoritarismo, horizontalidade, Zapatismo, democracia directa... Ainda assim, em todo o lado encontramos os mesmos princípios fundamentais: descentralização, associação voluntária, ajuda mútua, o modelo de rede, e acima de tudo, a rejeição de qualquer ideia em que o fim justifica os meios, e muito menos que a actividade de um revolucionário é tomar o poder estatal e começar a impor a sua visão com a força das armas. Acima de tudo, o anarquismo, como uma ética da prática - a ideia de construir uma nova sociedade "dentro do carcaça da antiga" - tornou-se a inspiração básica do "movimento dos movimentos", que tem sido desde o início menos sobre tomar o poder estatal do que expor, deslegitimar e desmantelar os mecanismos de dominação, ao mesmo tempo que se ganha cada vez mais espaços de autonomia e gestão participativa dentro dele.

Existem algumas razões óbvias para a atracção pelas ideias anarquistas no início do século XXI: obviamente, os fracassos e as catástrofes do século XX, resultantes de tantos esforços de superação do capitalismo através da tomada do controle dos aparelhos de governo. Um número crescente de revolucionários começaram a constatar que "a revolução" não vai chegar como um grande momento apocalíptico, um acontecimento equivalente à tomada do Palácio de Inverno, mas um processo muito longo que vem a decorrer ao longo da maior parte da história humana (mesmo que, como muitas outras coisas, tenha acelerado ultimamente) cheio de estratégias de fuga e evasão, como de confrontos dramáticos, e que nunca de facto, no sentir da maioria dos anarquistas, deverá chegar a uma conclusão definitiva (1).

É um pouco desconcertante, mas oferece uma enorme consolação: não temos de esperar até "depois da revolução" para começar a ter um vislumbre de como pode ser a verdadeira liberdade. Como afirmou o coletivo CrimethInc, maior propagandista do anarquismo norte-americano contemporâneo: "A liberdade só existe no momento da revolução. E esses momentos não são tão raros como possas pensar". Para um anarquista, de fato, tentar criar experiências não alienadas, uma verdadeira democracia, é um imperativo ético; apenas fazendo da nossa forma de organização no presente, pelo menos para nos dar uma aproximação grosseira de como uma sociedade livre realmente poderia funcionar, uma amostra de como todos algum dia deveríamos ser capazes de viver, podemos garantir que não cairemos de novo no desastre. Revolucionários sem alegria, sombrios, que sacrificam todo o prazer por uma causa, só podem produzir sociedades tristes e sombrias.

Estas mudanças têm sido difíceis de documentar porque, até agora, as ideias anarquistas têm recebido pouca atenção no meio académico. Há milhares de académicos marxistas, mas quase nenhum académico anarquista. Esta diferença é algo difícil de interpretar. Em parte, sem dúvida é porque o marxismo sempre teve uma certa afinidade com o meio académico que o anarquismo decerto não tem. O marxismo foi, afinal, o único grande movimento social inventado por um doutor. A maioria dos relatos da história do anarquismo assumem que foi, basicamente, semelhante ao marxismo: o anarquismo é apresentado como o filho cerebral de alguns pensadores do século XIX (Proudhon, Bakunin, Kropotkin...) que continuou então a inspirar organizações da classe trabalhadora, se enredou em lutas politicas, dividido em seitas...
 
O Anarquismo, nos relatos habituais, normalmente aparece como o primo mais pobre do Marxismo, teoricamente um pouco pé descalço, mas compensando, talvez, com a sua paixão e sinceridade. Realmente a analogia é forçada. Os “fundadores” do anarquismo não pensaram que tinham inventado algo particularmente novo. Eles viam os princípios básicos da ajuda-mútua, associação voluntária, tomada de decisões igualitária como sendo tão antigos como a própria humanidade. O mesmo se aplica à rejeição do estado e a todas as formas de violência estrutural, desigualdade ou dominação (anarquismo quer dizer, literalmente, “sem governantes”) – mesmo o pressuposto de que todas estas formas estão, de algum modo relacionadas e se fortalecem mutuamente. Nada disto foi visto como o começo de uma nova doutrina, mas uma tendência de longa data na história do pensamento humano, que não pode ser abrangida por uma teoria ideológica total.

Em certa medida é uma espécie de fé: a crença de que a maioria das formas de irresponsabilidade que tornam o poder necessário são de facto os efeito do próprio poder. No entanto, na prática é um questionar constante, um esforço para identificar todas as relações compulsivas ou hierárquicas na vida humana, e desafiá-las a que se justifiquem, e se não puderem – o que geralmente é o caso – um esforço para limitar o seu poder e, por conseguinte, alargar o âmbito da liberdade humana. Assim como um Sufi pode dizer que o Sufismo é a essência da verdade por trás de todas as religiões, um anarquista pode argumentar que o anarquismo é o anseio de liberdade por trás de todas as ideologias políticas. As escolas marxistas têm sempre fundadores. Assim como o marxismo veio da mente de Marx, assim temos leninistas, maoístas, althusserianos... (notem como a lista começa com cabeças de estado e se transforma gradualmente em professores de Francês – que, por sua vez, podem espalhar as suas próprias seitas: lacanianos, foucaltianos...)