8 de julho de 2012

O Tribunal Constitucional e o roubo dos subsídios


O Tribunal Constitucional e o roubo dos subsídios

O TC e a sua “fatwa”

Já sabemos que o Tribunal Constitucional (TC) é uma instituição do partido-estado PS/PSD. Para os mais desatentos, recordamos aquelas discussões internas, sempre que há cadeiras a preencher, quando algum dos ungidos juízes  passa à (dourada) reforma.

A imagem seguinte atesta o bolor que dali emana. Pela postura solene, pela negra farda utilizada, o naipe de celebridades jurídicas mais se parece com outro famoso tribunal, já enterrado na História - o do Santo Ofício. E, como na sinistra Inquisição, estes juízes  não são objeto de escrutínio democrático e constituem uma instância de lapidares e inapeláveis decisões – “fatwa”, como no Islão mais rigorista.


O dito TC emitiu uma “fatwa” no passado dia 5 de julho do ano do Senhor de 2012, apesar do voto divergente de três dos seus membros. Sem desonerar os trabalhadores da administração pública nem os pensionistas dos efeitos do assalto aos rendimentos decretado pela troika, através do chamado governo, o TC abre a porta para que o dito governo vitime os trabalhadores do setor privado com idêntico roubo.

Amor, com amor se paga. O mesmo partido-estado que nomeou os insignes juízes , para cargos tão repousantes e isentos de avaliação, recolhe, na volta do correio, os frutos da confiança depositada e da obediência desejada.


A “fatwa” do TC, mais conhecida por acórdão

O princípio da igualdade alegado pelos doutos juízes  só tem aplicação para 2013. O ano corrente fica assim, decretado na “fatwa” do TC, como um ano de desigualdade. As mesmas leis em vigor têm uma interpretação distinta, de acordo com o ano civil que se queira considerar. Sendo o direito real um verdadeiro bazar há, certamente, uma lógica para isto, por muito esdrúxula que possa ser. E se não houvesse, pouco importaria, porque o TC é um género de Deus ex machina, cria matéria a partir do vácuo; nesse entendimento, ficamos dispensados de arcar com o elevado custo do recurso às habituais sociedades de advogados.

Face à decisão do TC, imaginamos o bater de palmas em reunião do conselho de ministros enquanto a partícula de Relvas (Passos), aparece, pesaroso, dentro do seu ar de sonâmbulo, a dizer que vai cumprir a “fatwa”. Mas entretanto, descansa a suserania internacional informando que não irá fazer nada sem o aval da troika. Tocante, esta sinceridade.

Vejamos. O governo garante, em 2012, a arrecadação dos subsídios de férias (já concretizada) e fica descansado quanto a semelhante saque em novembro. Nada de novo, com ou sem “fatwa”.

Várias vezes foi levantada a questão do assalto aos subsídios dos trabalhadores do setor privado, como reserva estratégica para o cumprimento do santificado memorando da troika. Perante a evidência de que a meta do deficit inventado pelo Gaspar para 2012 não vai ser alcançada, essa reserva estratégica vai ser ativada, como sempre foi claro; com a vantagem de contar, ab initio, com a última “fatwa” do TC, já emitida para os anos vindouros. Assim sendo, até a veneranda figura que costuma emitir dislates a partir de Belém, fica isenta de ser acusada de não pedir a apreciação da constitucionalidade da medida governamental, podendo dormir a sesta descansado.

Enquanto os cães ladram a caravana passa, com os alforges repletos do dinheiro roubado.

Para o TC, a questão não é a violência e a violação de direitos, a desigualdade da medida aplicada em 2012 a trabalhadores da administração pública e a pensionistas. A lógica do TC não é a aplicação do mal a alguns mas, o facto dessa aplicação não ter sido universal, de não ter recaído sobre todos os trabalhadores por conta de outrém. Que despautério! A questão, como colocada pelo TC é a de que o mal não foi generalizado e jamais a sua natureza maléfica.

Assim, o TC promove o sentimento de olho gordo para as vítimas do assalto de 2012, esperando que fiquem felizes por serem acompanhados em 2013, na redução de rendimentos, pelos vizinhos e amigos que o acaso colocou a trabalhar no setor privado.

Na lógica do TC, a aplicação da justiça constitucional faz-se pelo alastrar do mal praticado, não pela prática de actos que beneficiem ou evitem males à multidão. Os membros do TC revelaram não ter qualquer sentido de cidadania; emitem acórdãos, com a sensibilidade  de uma enfardadeira a produzir fardos de palha.


Análise política da “fatwa”

A interpretação do artº 282 da Constituição revela o comprometimento dos juízes  do TC com o poder cleptocrático e a soberania do capital financeiro global. Diz o nº1 do referido artigo que “a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.”

Em linguagem corrente, não iniciática, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma torna nula essa norma e o retorno à situação que a dita norma pretendia alterar. Embora latim não seja algo em que estejamos familiarizados, não resistimos à citação de uma vetusta frase que calará fundo no espírito dos juristas: cessante ratione legis, cessat ejus dispositio[1]

No articulado das leis, começa-se sempre pelo elemento mais determinante, basilar da norma, deixando para os pontos subsequentes, os casos particulares ou excepcionais de aplicação. Sendo assim, o nº 1 acima transcrito, constitui o real alicerce do artigo e do seu espírito.

Os nº 2 e nº 3[2] do mesmo artº 282 referem, precisamente, casos particulares, sem aplicação no caso vertente.

Quando convém ao legislador, as leis deixam verdadeiros alçapões para admitir interpretações e soluções a contento do poder ou de quem tiver dinheiro para contratar advogados de maior gabarito ou nome no mercado da toga. Assim acontece com o nº 4 do tal artº 282 tão esprimido e esticado pelo TC; aí, o coletivo de togados encontrou a escapatória para satisfazer o partido-estado e transpor para acordão “their master voice”. Transcrevemos a seguir o nº 4 do artigo:

“Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.os 1 e 2.”

A segurança jurídica não pode ser utilizada como argumento. A equidade também não, porque o acórdão não aplica a equidade para 2012 e deixa subjacente a possibilidade da medida governamental ser estendida a todos os trabalhadores por conta de outrém, em 2013 e anos posteriores, sem que isso perturbe a habitual hibernação dos pacatos juízes  do TC. E, por outro lado, cabe perguntar se, em nome da equidade, o TC não irá chumbar as medidas por isentarem os esforçados “empresários” ou os preocupados especuladores, banqueiros e afins da imolação no altar da troika.

Que pensará o TC sobre o que seja o interesse público? Quase certamente entende ser do interesse público o que interessa a Portugal, sem cuidar de observar que Portugal é uma abstração, um conceito vazio, se não for materializado em gente, nas pessoas que nele residem, fonte de direitos e obrigações; embora os primeiros tendam a ser evanescentes e o aumento das segundas, galopante. Que sentido fará aceitar e abrir as portas à extensão dos sacrifícios em rendimentos e direitos para os trabalhadores e pensionistas se estes constituem a esmagadora maioria da população? Qual o interesse público que se constitui à revelia e em antagonismo aos interesses da população, excluído um punhado de empresários de topo, banqueiros e mandarins?

Cavaco não levantou questões de inconstitucionalidade quando o diploma definindo o assalto aos direitos e rendimentos de trabalhadores da administração pública e reformados lhe aterrou diante do nariz. No seu espírito tacanho de economicista, o orçamento estaria “uber alles” como ordenado pelo Merkel, para salvaguarda dos mercados financeiros. E o TC, no seu tosco argumentário, mais não faz que replicar a lógica do chamado presidente.

Nem um nem outro teve dúvidas; o primeiro, já nos seus tempos de alguma lucidez, havia proferido “raramente ter dúvidas”, coisa que também não ocorre aos muares. E os emissores de “fatwa” por definição também não têm dúvidas. Afastam ambos, PR e TC assim, liminarmente, o princípo de que ambiguitas, vel dubietas, in meliorem semper partem est interpretanda[3].

Torna-se pois lógico que, não tendo dúvidas nunca podem aferir se a interpretação que fazem é feita no melhor sentido; circulam numa “einbahnstrasse”, numa via de sentido único, sem rotundas,  cruzamentos ou entroncamentos. Sendo o melhor sentido, em democracia, aquele que corresponde ao mais favorável à maioria, Cavaco e o TC, como ungidos, colocam-se acima da plebe e definem eles o sentido único que paira nas suas cabecinhas, indiferentes ao impato das suas decisões sobre a multidão.

Observe-se, o parágrafo da peça jurídica do TC que, no âmbito do sistema cleptocrático se chama tecnicamente “acórdão” face ao qual a multidão tem muitas razões para o designar por “desacórdão”:

“Atendendo a que a execução orçamental de 2012 já se encontra em curso avançado, o Tribunal reconheceu que as consequências desta declaração de inconstitucionalidade, poderiam colocar em risco o cumprimento da meta do défice público imposta nos memorandos que condicionam a concretização dos empréstimos faseados acordados com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, pelo que restringiu os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos permitidos pelo artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, não os aplicando à suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes aos 13.º e, ou, 14.º meses, relativos ao ano de 2012.”

Aqui se denota o significado de interesse público no pensamento togado.

O orçamento para 2012 foi aprovado em 2011. Foi preciso mais de um semestre para o TC emitir o acórdão? Não acreditamos que a interpretação vertida no acórdão tivesse necessitado de tanto tempo de aturado estudo dos treze conselheiros e dos seus assessores; não os temos em grande consideração em termos políticos e de cidadania mas, não os consideramos asnos. 

Se tivessem agido na devida altura, a execução orçamental não se encontraria “em curso avançado” nem se colocaria “em risco o cumprimento da meta do défice público”. Mas, não agiram, arrastaram os pés para permitir que o partido-estado pudesse cumprir o seu plano de saque dos trabalhadores da administração pública e dos pensionistas; agiram sim, em total conivência e da conveniência da facção do partido-estado no poder com a tolerância benevolente da outra ala do PS/PSD, “Seguramente”, para agora alegarem com o facto consumado.

A meta do deficit público é um instrumento de política económica e financeira, não é uma lei e o TC tem apenas de considerar e interpretar o que pode ser ou não antagónico com a lei fundamental; não tem de se preocupar com as questões conjunturais da ação governativa. E, por isso argumentar com a meta do deficit é um embuste que ficará impune dado o caráter de bula, de “fatwa”, o caráter inapelável dos acórdãos do TC. E por isso, quando Passos mostrou um ar preocupado com a situação, deveria estar a dizer aos seus botões “bom trabalho, companheiros, já nos safaram para 2013”. O seu correligionário Mira Amaral, funcionário da família Dos Santos apressou-se a clamar por despedimentos na administração pública[4]

Pior anda o TC quando argumenta com “os memorandos que condicionam a concretização dos empréstimos faseados acordados” para enformar o acórdão. O TC, desistiu da sua soberania e manifesta vassalagem aos interesses do capital financeiro internacional, a preocupação com as notações das agências de rating, as contas do ministério das finanças. Revela assim duas falhas políticas e éticas:

1.      que, para um TC o texto constitucional é O texto fundamental para um estado soberano e que reflete, naturalmente as obrigações do enquadramento internacional; ora, o memorando da troika não está contido, obviamente, na Constituição.

2.      que, como instituição, deve ter como substrato ético, não um interesse nacional abstrato mas, o interesse público, o da maioria dos residentes em Portugal.

Atuando como atuou, o TC só veio a evidenciar-se como estrutura partidária, veio dar razão aos que defendem a sua inutilidade prática para a multidão, sendo a Constituição um documento que, nas suas mãos, só admite as interpretações que beneficiam os poderes, só contemplando a satisfação da multidão de modo acessório ou ocasional.

Atuando como atuou, o TC só vem demonstrar que o constante apontar para as instâncias judiciais e de salvaguarda da Constituição por parte da esquerda institucional, representa uma forma de alimentar expetativas falsas na multidão e, nos trabalhadores em particular. Esse recurso é em geral, uma forma de alijar responsabilidades de esclarecimento e mobilização da multidão, colocando as decisões sobre os seus interesses, não nas suas mãos, na sua capacidade de luta e contestação mas, nas instituições do regime cletocrático, da democracia de mercado e do partido-estado, representante dos capitalistas lusos, delegado do capital financeiro global para a magna tarefa de empobrecimento e genocídio da multidão.

A escolha é clara. Democracia exige a supressão do partido-estado em toda a sua extensão, como temos vindo a demonstrar[5].


Este e outros textos em:



[1]     Cessando a razão da lei, cessa aquilo sobre que ela dispõe
[2]    “2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.”
“3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.”
[3]   A ambiguidade ou dúvida deve sempre interpretar-se no melhor sentido
[5]   Sobre a democracia: A democracia e a sua usurpação (1ª parte)

http://pt.scribd.com/doc/85519669/Sobre-a-democracia-A-democracia-e-a-sua-usurpacao-1a-parte

     Para um novo paradigma político; a re-criação da democracia



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