3 de julho de 2012

Para que servem as Forças Armadas? A doença senil do militarismo



Em 2005 divulgámos um texto[1] sobre a (in)utilidade das FA com referência também à sua atuação no terreno, nas últimas décadas Duas entrevistas dadas recentemente pelo general Loureiro dos Santos a propósito da saída de um seu livro, motivou-nos a escrever este texto e com ele agitar o anti-militarismo como área de crítica do sistema capitalista e das suas instituições; área que a frouxa esquerda institucional portuguesa ignora quase em absoluto.

Sumário

1.            Estado, só com forças armadas?
2.            As FA e os vazios de poder
3.            As FA e o perigo espanhol
4.            Os gastos com as FA
5.            A dimensão dos efetivos militares
6.            O papel das FA: fazer face às ameaças externas, evitar a “anarquia” e instrumento de política externa
7.            A participação das FA na “diplomacia económica”
8.            As  FA e a proteção civil
9.            As FA e as intervenções dentro do país
10.       As FA e as ameaças transnacionais
11.       Os gastos dos países europeus com a defesa
12.       Os pesadelos do general curam-se com mais gasto militar
13.       A visão da Europa, da Alemanha e da austeridade
14.       As FA e o serviço cívico
15.       As FA como escola de valores


Para que servem as Forças Armadas? A doença senil do militarismo



Comecemos com algumas curiosidades:

  • O livro do general surge na altura em que o advogado de negócios Aguiar Branco[2], em comissão de serviço como ministro da defesa nacional - nome ridículo dado num país cujo governo iça a bandeira branca perante os ultimatos do capitalismo global - cria uma comissão de reumáticos membros para a preparação de um “novo conceito de defesa nacional”[3]

  • O general autor do livro – Loureiro dos Santos – fará parte da comissão criada pelo referido causídico em funções ministeriais. E decerto, que defenderá no âmbito dos trabalhos dessa comissão, as ideias colocadas no livro ou expendidas nas duas entrevistas;

  • O livro é editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, pertença do grão-merceeiro Alexandre Soares dos Santos e onde habita um inteletual orgânico do regime cleptocrático, António Barreto;

  • Em suma, o livro não é apenas cogitação típica de militares na reforma, sobre a pátria, a defesa, o futuro dos paisanos mas, uma feliz conjugação entre Estado e capitalistas, com a intervenção de grados elementos da brilhante inteletualidade que serve a democracia de mercado.

Dessas duas longas entrevistas na imprensa escrita extraimos algumas observações, citando, em princípio, as afirmações do general Loureiro dos Santos.


1.      Estado, só com forças armadas?

As FA servem “Para dar consistência e realidade a um Estado, que sem elas não pode considerar-se como tal [4]

Se um Estado só pode ser tomado como tal se tiver umas FA, a Costa Rica e a Islândia não são Estados, são territórios amputados, castrados, pois lhes falta a virilidade que só a tropa lhes pode conferir; serão um género de eunucos políticos. Assim sendo, Loureiro dos Santos terá de propor à ONU a expulsão daqueles países que não são Estados ou relegá-los a uma qualquer categoria inferior, como a de ONG. E coerentemente ter-se-á de mandar sair os embaixadores daqueles países, se os houverem, de facto; é que embora Portugal tenha umas FA, aqueles países pouca relevância devem dar a um país como Portugal.

A Islândia, mesmo sem FA, impôs a sua vontade ao capital internacional quando confrontada com a dívida dos seus bancos. E não tem tropa; e foi sem tropa que procedeu a uma varridela mestra na classe política. Por outro lado, não consta que a ausência de FA, tenha sido um aliciante para o desembarque de “marines” ou para a exibição de canhoneiras junto de Reikjavik, em prol dos sagrados interesses dos bancos ingleses e holandeses. Contrariamente ao que aconteceu em Grenada, nas Caraíbas, em 1983, onde o rambo Ronald Reagan utilizou o seu poderio militar para invadir uma ilha com 110000 pessoas cujos dirigentes não tinham a confiança da CIA.

Por seu turno, a Costa Rica, não sendo um país rico, goza da ausência de golpes de estado e massacres perpretados por militares, desde que a espécie foi lá extinta em dezembro de 1948; ao contrário dos seus vizinhos.

Por outro lado, uma das mais poderosas multinacionais do mundo e, certamente, a mais antiga – o Vaticano – está instituido como Estado e a sua legitimidade e poder não lhe são conferidas, decerto, pelas alabardas da Guarda Suiça.

Ficamos sem saber se, no fundo do pensamento teórico do general, um território sem população civil mas, competentemente defendido por FA – como a ilha de Diego Garcia – pode utilizar essa presença militar para se erigir em Estado. Fica a sugestão para um próximo livro do oficial.

Portugal, que por ter FA é um Estado a sério, na acepção delirante de Loureiro dos Santos, está colonizado pelo capital internacional, tem um governo exterior às suas fronteiras (a troika), que delega numa estrutura mafiosa – o PS/PSD – a satisfação dos seus soberanos interesses.

Perante esse facto, o que fazem as FA?

A Constituição (artº 275, nº 4) diz que as FA “estão ao serviço do povo português, são rigorosamente apartidárias”. Porém, as FA aceitam a actual perda de soberania em patente desfavor do povo português, sem sair das messes e dos gabinetes. Tal como aceitam o continuado controlo político do país, por uma estrutura partidária mafiosa; aceitam o acantonamento em S. Bento de um bando de paisanos, delegados da troika e bastas provas de uma menoridade inteletual tão grande quanto a sua venalidade. E, aceitam como comandante supremo das FA uma figura emanada da ganga partidária, ridícula e maculada por negócios e encobrimentos vários, pelos quais toda a grei está a pagar; incluindo os militares.

Essa aceitação torna, portanto, as FA coniventes com esse controlo,  mostrando-se, implicitamente, como parte integrante da estrutura partidária reinante, como parcela do partido-Estado.


2.      As FA e os vazios de poder

Um país sem FA “É olhado pelos outros como um vazio de poder. E como a natureza tem horror ao vazio, esse será sempre preenchido[5]

Loureiro dos Santos evidencia uma lógica oitocentista em que o poder se firmava pela presença dos militares. Assim, Portugal mandava para as colónias – antes da guerra colonial – chefes militares, com botas, uniformes e capacetes chamados de coloniais para mostrar aos gentios quem mandava na zona, não fossem estes ser tentados pela obediência a uma potência concorrente, do outro lado da fronteira.

A ocupação militar evitava o “vazio de poder”, pois os direitos dos africanos sobre as suas terras não eram reconhecidos uma vez que na lógica colonialista e racista, só os colonizadores – como “civilizados” - estavam credenciados para se apossar das terras e, preencher o vazio de poder. Os colonizadores como não encontraram conservatórias de registo predial, consideravam a terra e as riquezas disponíveis para quem tivesse mais músculo; não havendo registos notariais instaurou-se a lei do saque. E daí, a importância daqueles heróicos militares, cujos nomes são recordados através de nomes de rua.

Quando a guerra colonial eclodiu, as FA foram incumbidas de garantir a soberania de um Portugal multicontinental e pluri-racial, sempre no respeito pela Constituição e a mando do governo, então fascista. Embarcaram para demonstrar que o vazio de poder não se podia instalar, pois até a natureza detesta o vazio, como diz o general-escritor.

Passados treze anos, a luta gerou mortos e estropiados e muitos outros traumatizados de guerra mas - não por mero acaso - entre esses, a grande maioria foram dos forçados a fazer parte da guerra, sem qualquer vontade ou entusiasmo nessa participação; em nada preocupados com um eventual vazio que se gerasse em terra alheia. Também não por mero acaso, a oficialidade superior, os mais imbuidos no espírito da defesa da Pátria Grande, arriscavam pouco a sua pele, mas, ordenavam - sempre que o tomavam como necessário - a execução de crimes de guerra. A violência sobre os povos colonizados deveria fazer parte do cumprimento do desígnio da natureza, de preencher o vazio, mesmo que à custa de corpos esvaziados da vida. As pátrias sempre foram excelentes argumentos para barbaridades.

Ao que sabemos, todos esses criminosos ficaram impunes e vazias ficaram as cadeias que os deveriam ter albergado. Para o efeito ficou por preencher o vazio de justiça, sabiamente desenvolvido por paisanos – capitalistas e políticos - para impunemente roubarem os indígenas que vão sobrando do dissolvido império acidental da Lusitânia.

Quando se tornava evidente que a derrota estava no horizonte, os militares descobriram que afinal as respetivas peles valiam bem mais do os eventuais vazios instaurados em terra alheia. Aliás, as terras coloniais não estavam vazias de poder e estavam repletas de gente farta da ocupação colonial.

A derrota estratégica ou o cansaço da guerra tornava particularmente desejado o regresso ao ripanço das messes e a oficialidade decidiu rasgar a obediência constitucional e fez o golpe de estado que liquidou os restos do regime salazarista, apesar de Salazar já estar morto. E dentro da lógica hierárquica do ambiente castrense, pegaram, como bandeiras identificadoras, num grupo de generais reaccionários q.b. capitaneados (melhor, generalizados) por um tal António de Spínola, conhecido pelo “Caco”, antigo estagiário na frente leste, junto da Divisão Azul, enviada por Franco para ajudar Hitler. Spínola ficou com o encargo de evitar o vazio do poder; já não em África, mas na ocidental praia lusitana.

Como o vazio é um mero conceito abstrato, filosófico, cada vez que os colegas de Loureiro dos Santos, no Pentágono e na NATO, decidem fazer uma guerra, não é porque nos locais escolhidos haja vazios de poder mas, porque os militares e os seus mandantes visam, precisamente, esvaziar os povos do usufruto dos seus recursos e do produto do seu trabalho.

De modo genérico, é evidente que um país sem FA não é automaticamente um “figo” por parte de quem o queira invadir. Não é forçosamente um espaço vazio a ocupar, a retalhar sem oposição. Loureiro dos Santos parece esquecer que os territórios têm pessoas, com bens a defender e direitos que não estão dispostos a entregar a ocupantes estrangeiros, por muito bem armados que estejam. Um território só estará vazio se não tiver gente que o ocupe; porém, povo, é ser coisa subalterna, dispicienda no conceito de Loureiro dos Santos.

O general revela, provavelmente, o que enforma as cabeças do generalato, dos estados-maiores e da NATO, que terá frequentado na sua vida ativa de militar e onde terá, certamente amigos. Esse desdém pelos paisanos, pelo povo, elementos subalternos nos planos militares, está integrado no genoma dos generais. Consideram-se como casta superior, os militares entendem-se com direitos especiais sobre o produto do trabalho dos paisanos, ainda que, efetivamente, constituam apenas sobrecarga orçamental.

A realidade, porém, é terrivelmente impositiva e, não resistimos a dar alguns exemplos.

Rapidamente as tropas de Hitler derrotaram o exército francês na 2ª guerra e, mais rapidamente ainda, o generalíssimo Pétain aceitou colaborar com o ocupante, tendo a resistência passado a ser feita pelo povo. O mesmo orgulhoso exército francês, integrando a fina flor do generalato gaulês, foi derrotado no Vietnam por guerrilheiros descalços comandados por um antigo professor primário. E, no Afeganistão, dentro de dois anos, a NATO vai debandar, depois de doze anos de guerra, mesmo depois de ter inventado um exército afegão, com o recurso ao que há de mais moderno e mortífero na máquina de guerra dos EUA, incluindo procedimentos bárbaros que não dignificam a pretensa superioridade da civilização ocidental. Os generais não vêem os povos nos mapas, nem sequer nas suas elocubrações táticas ou estratégicas. Nos códigos militares as cenas guerreiras apenas dão protagonismo à dicotomia IN/NT (o INimigo e as Nossas Tropas, respetivamente).


3.      As FA e o perigo espanhol

 “Imagine que Portugal não tinha Forças Armadas (FA). Como é que a Espanha olharia para este espaço? O que prepararia se aqui se passassem coisas que entenderia como prejuízo para si?”[6]

De facto, não é difícil imaginar Portugal sem FA - um alívio na despesa pública corrente, menos negócios para algumas empresas intermediárias e fornecedoras de bens e serviços e um problema para as muitas empresas de segurança que contratam ex-militares para os seus quadros. Só a revenda dos famosos submarinos do Portas daria um alívio de uns € 1000 M ao deficit. O recente cancelamento da encomenda de helicópteros para o exército não provoca um clamor de preocupação popular… decerto porque a notícia soou num sábado[7].

Mais interessante é a relação feita pelo general, entre uma eventual inexistência de FA em Portugal e os perigos que daí adviriam, vindos de Espanha.

Temos fortes convicções de que os generais espanhóis não pensam invadir Portugal; e, certamente, não é o poderio das FA portuguesas que os dissuade. Uma avaliação feita há alguns anos e divulgada no antigo “O Jornal” apontava para um lapso de tempo de uma semana para a divisão Brunete, acampada a norte de Madrid – o resto da tropa espanhola ficaria nos quartéis – para ocupar Portugal. Pairavam ainda no ar ideias de uma possível intervenção militar franquista nos tempos do PREC, embora também tivesse havido a ameaça de forças da NATO. O nosso cabo de guerra deve ter muita imaginação para considerar o perigo de tanques espanhóis atravessarem o Caia para conquistar Elvas[8], com o bourbónico monarca à frente, para caçar javalis no Alentejo.

É evidente que o atrás referido é um exercício fútil. Dentro da UE, a ocupação dos espaços e a exploração dos povos não é feita por militares mas, por multinacionais, capitais financeiros e outros capitalistas, de modo muito mais barato, menos destrutivo e sem as reações populares a uma ocupação militar. O custo das “troikas” para o capital global, sobretudo tendo em conta que é o erário público dos ocupados que paga a despesa, não passa de uns trocos. Por outro lado, sondagens feitas em Espanha revelam um grande desinteresse por uma união política dos estados ibéricos… embora essa união já esteja consumada no âmbito económico e militar, através da UE e da NATO. A visão patrioteira e romântica da História está presente dos dois lados da antiga fronteira.

O general continua com o complexo anti-espanhol que era incutido nas escolas, nomeadamente no tempo do fascismo e que se sintetizava no dito popular “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”. O mesmo complexo que inventou a desproporção enorme de forças em Aljubarrota para elevar a bravura lusa – sem esquecer a célebre padeira local – ou um forte desejo independentista nas vésperas de 1640. Tudo serve para justificar a utilidade das FA em Portugal; nem que seja o perigo de uma intervenção marciana, se nada houver de mais credível.

A forma como os EUA encarariam Portugal caso não existissem FA faz parte do mesmo delírio estratégico do general.

A relevância das FA portuguesas, durante a I Grande Guerra limitou-se ao sacrifício de soldados mal equipados, encurralados nas trincheiras de La Lys, para defender um batalhão inglês. Durante a II Grande Guerra, Portugal manteve-se neutro, não tanto pelos desejos de Salazar mas, porque nenhum dos beligerantes retiraria daí qualquer benefício; sobretudo atendendo à neutralidade da Espanha franquista e à incapacidade operacional da tropa, então mais dedicada a validar os esforços de Salazar na repressão do povo, como reserva estratégica do regime.

Relembramos aqui o episódio divertido do aluguer da base das Lajes. Os EUA não tinham relações diplomáticas com Portugal pois Salazar não gostava do “American way of life”, com mulheres independentes, Hollywood e outras facetas pouco adequadas à ruralidade humilde e patriarcal pretendida pelo ditador. E, os norte-americanos combinaram com os ingleses - sabendo do respeito que Portugal dava à secular aliança com os britânicos, remontada ao final do século XIV – serem os ingleses a pedir a Salazar facilidades nos Açores. Salazar foi simpático com os ingleses mas, fez-se caro, pedindo à Grã-Bretanha que fornecesse armamento para as ridículas FA portuguesas.

Quando tudo estava acordado, os ingleses revelaram o interesse dos EUA, ofereceram uma parceria anglo-americana e Salazar sentindo-se enganado, não gostou; mas acabou por ceder dada a ameaça militar dos EUA, com pressa para a posse da base, em época de ofensiva contra a Alemanha. Quanto às armas, os ingleses procederam a alguns fornecimentos, havendo relatos que referem a pouca consideração para com as capacidades das FA portuguesas[9].

Passados quase 70 anos dessa época, os EUA já pouco estão interessados nas Lajes, uma vez que o desmantelamento do bloco soviético lhes permitiu uma presença militar muito mais a leste. E, certamente, não contam com as FA portuguesas para qualquer ação militar de relevância; mas, servem-se de um ou outro pelotão luso quando querem apresentar um friso de bandeiras que possa representar o empenho da “comunidade internacional” nas aventuras do Império. Naturalmente, dispensamo-nos de aqui descrever o dispositivo militar norte-americano e da NATO na Europa, centrado a sul e a leste.


4.      Os gastos com as FA

Só cerca de 20% dos gastos das FA se destinam à parte de operações e manutenção sendo 80% custos com o pessoal, diz o general

Loureiro dos Santos reconhece que a relação gastos com pessoal/sobre gastos totais está “acima do recomendável” e mostra-se agradado com o facto de o custo por militar ser inferior ao de outros países europeus da NATO. Porém, extrai uma conclusão distorcida, a de que “os militares portugueses têm uma rentabilidade operacional maior. Conseguem fazer o mesmo ou mais do que os seus parceiros com menos dinheiro.”[10]

Porquê distorcida?

Quaisquer FA de hoje não se baseiam em grandes coortes de infantaria mas, em corpos especializados providos de equipamentos e tecnologias caras; e é isso que faz aumentar substancialmente o custo por militar para € 73 860 na Bélgica, € 186 000 na Holanda e € 61 240 em Espanha, contra € 42 000 euros por ano em Portugal, como informado pelo próprio general.

Um mais baixo custo por militar revela, essencialmente, deficiências de equipamento, na afetação de meios e, portanto, é falso afirmar-se que as FA portuguesas podem fazer o mesmo ou mais do que os congéneres dos países atrás referidos. Se os equipamentos fossem semelhantes entre os vários países da NATO referidos, com custos próximos e o dotação de militares correspondesse ao tecnicamente necessário para a operação militar, as diferenças de custo refletiriam as diferenças salariais. Não nos parece que a diferença  entre o encargo salarial nas FA holandesas e o correspondente nas FA portuguesas, por exemplo, seja de € 144000 ( 186000-42000) ou mesmo cerca de € 19000 se a comparação for feita para um militar espanhol.

É evidente que as capacidades operacionais das FA portuguesas são muito baixas, não porque tenham falta de pessoal para utilizar o equipamento disponível mas, porque estão longe de ter equipamentos modernos susceptíveis de lhes dar maior capacidade de intervenção, maior eficiência em operações de guerra. E, de facto Loureiro dos Santos lamenta o incumprimento das aquisições previstas na Lei de Programação Militar (LPM), o que certamente tem impactos desempenho relativamente ao de militares de outras latitudes.

A instalação do poder português no Índico, no século XVI baseou-se na superioridade naval, em termos de tonelagem e armamento das naus, quando feita a comparação com as fustas turcas ou dos marajás indianos. Os portugueses tiveram sorte em nunca terem encontrado aqueles gigantescos juncos chineses com que o almirante Zheng He impressionou os povos ribeirinhos da Ásia, numa armada de 200 navios e 27000 homens; ainda no século XV, esses navios foram destruidos devido a dificuldades financeiras e a China regressou ao seu casulo continental… de que só recentemente começou a sair. Como teria sido a História sem a superioridade naval portuguesa e, depois holandesa e inglesa, no Índico?

Ontem como hoje, qualquer guerra exige FA que estejam tecnologicamente dotadas; as que não o estejam, não têm utilidade tática, não são dissuasor estratégico e, não servem para nada, do ponto de vista da defesa face a agressões externas ou, menos ainda, para procederem a uma projeção de meios numa ação militar ofensiva.

A principal utilidade as FA é constituirem uma reserva armada dos poderes contra os povos, raras vezes intervindo a favor destes. Recorde-se, por exemplo na América Latina, o envolvimento das FA em guerras é, de longe, muito inferior ao caudal de golpes de estado, assassínios, repressões sangrentas; são estes actos contra os povos que preenchem os duzentos anos de curricula dos generais latino-americanos.

Em Portugal, não há razão para a existência de FA; porque não há ameaça externa credível, porque não há uma verdadeira capacidade para uma guerra a “sério” e ainda, porque há imensas necessidades da multidão por satisfazer que prevalecem sobre a compra de brinquedos de morte ou a manutenção de uns milhares de pessoas, essencialmente, sem funções produtivas. As imagens das manifestações dos militares – sempre ancoradas no pré – só devem causar preocupação aos defensores da existência de FA, dado que a profusão de cabeleiras brancas denota eventuais dificuldades operacionais.

Mandar cerca de 200 militares fazer segurança ao aeroporto de Cabul exige equipamentos muito mais baratos do que o envio de aviões ou tanques ou mesmo uma hipotética capacidade para o envio de drones, a partir de Tancos; é uma participação guerreira que se compagina com umas FA cheias de gente e parcas de meios. Há uns dois anos, um grupo de soldados teve de adiar a ida para o Afeganistão porque o avião C-130 onde iam embarcar avariou e o segundo existente estava em reparação.

Na recente aventura de Torquemada Portas nos mares da Guiné-Bissau, a brincadeira da mobilização de uma Força de Reação Imediata (FRI) poderá ter custado 1,7 e 2,1 milhões de euros[11] com a utilização de quatro navios, um avião e 500 militares, em 17 dias. E tudo isto para eventualmente prover o apoio a 55 homens encarregados do resgate eventual de 3500 portugueses residentes na Guiné-Bissau e outras pessoas de países da UE que, parece nunca se terem encontrado em perigo ou, que tenham pedido auxílio. Fica por demonstrar como o dispositivo luso, no caso de a situação militar na Guiné-Bissau se complicar, conseguiria evacuar as mais de 3500 pessoas em fuga. Um avião de pequenas dimensões não seria solução e, toda aquela gente não caberia a bordo da flotilha…

Imagine-se ainda que a operação teria durado mais tempo. Ou que os 55 bravos tinham mesmo desembarcado na Guiné-Bissau, submetidos à legítima e pouco amistosa reação do IN guineense. Qual teria sido o custo financeiro da campanha contra os infiéis? E quantos cruzados teriam regressado à pátria lusa em caixas de pinho?

Esta amostra revela a fraca capacidade portuguesa para um conflito mais sério e, por outro lado, evidencia que um país empobrecido como Portugal não pode aspirar sequer a ter FA modernas. Para além de razões éticas, as FA são um custo desnecessário, sendo mais aconselhável que os portugueses declarem a sua ausência de qualquer bloco militares – mesmo considerando a componente militar da UE instituida no Tratado de Lisboa – e a renúncia à força militar para a resolução dos problemas internacionais.

Na realidade, Portas é um verdadeiro sobrecusto nacional, com os seus submarinos (incluindo a envolvente e imersa corrupção), a operação contra o “barco do amor” em 2005, junto à Figueira da Foz, em defesa dos valores ditos cristãos e, agora, a operação na Guiné-Bissau. Cabe perguntar se a “troika” mandou um email ao Gaspar por causa deste gasto idiota.

A propósito, recordemos ainda a visão de uma pátria grandiosa, emanada de um conhecido poeta caçador – Manuel Alegre – mais conhecido pela profundidade do seu pensamento político (?), que em muito se prende com o espírito do general Loureiro dos Santos ou, de Torquemada Portas.

A propósito do recente golpe de estado na Guiné-Bissau, Alegre não só secundou a atitude guerreira da ex-potência colonial e do seu governo, como propôs a criação, na CPLP, de uma componente militar[12]; isto é,  uma NATO dos pequeninos ou, se se preferir mais uma agência do Pentágono. Tendo em conta as diferenças de capacidades financeiras entre os vários países da CPLP, somente o Brasil e a petro-ditadura angolana teriam meios para financiar operações, tornando os pequenos estados africanos alvos fáceis de recolonização pelos capitais dos maiores.

Porém, três anos atrás (13/4/2009), o grande vulto do pensamento político patriótico afirmava no seu blog "Não tem sentido que, numa situação de crise que exige a mobilização dos nossos escassos recursos, o ministro da Defesa venha defender o reforço do envio de tropas portuguesas para o Afeganistão".  Hoje, com recursos ainda mais escassos e numa situação de protetorado financeiro, Portugal terá certamente esses recursos… para invadir a Guiné-Bissau e participar em mais uma estrutura guerreira (CPLP). Alegre, dedique-se à caça de gambuzinos e em silêncio!


  1. A dimensão dos efetivos militares

Consideremos agora, um pequeno exercício, naturalmente indicativo e não rigoroso, sobre os efetivos militares em Portugal. Este exercício sofre da limitação essencial resultante, porque elaborado por paisanos, membros assumidos dessa “sociedade civil” marcada pela incompreensão da importância das casernas.

Em Portugal, estão previstos na Lei Orgânica do Exército Português, 21 regimentos que, em princípio, deverão ser comandados por coronéis. E se houver um general no comando de cada dois regimentos, ter-se-á cerca de uma dúzia de generais realmente operacionais no Exército. Ora em 2009, o Exército português tinha 65 generais, muitos dos quais contribuirão para a nobre tarefa de manter cadeiras sem pó e dar ocupação a ajudantes, ordenanças, motoristas, etc.


Efetivos das Forças Armadas em Portugal



Total
Marinha

2003
2009
var %
2003
2009
var %
Of. Generais
134
131
-2,2
35
33
-5,7
Oficiais
6.473
6.299
-2,7
1.474
1.528
3,7
Sargentos
10.969
10.293
-6,2
2.768
2.755
-0,5
Praças
18.559
17.842
-3,9
6.160
5.378
-12,7
total
36.135
34.565
-4,3
10.437
9.694
-7,1
SMO
3.768
-
-
142
-
-


Exército
Força Aérea

2003
2009
var %
2003
2009
var %
Of. Generais
64
65
1,6
35
33
-5,7
Oficiais
3.253
2.920
-10,2
1.746
1.851
6,0
Sargentos
5.744
4.896
-14,8
2.457
2.642
7,5
Praças
9.390
9.900
5,4
3.009
2.564
-14,8
total
18.451
17.781
-3,6
7.247
7.090
-2,2
SMO
3.626
-
-

-
-








           Fonte: Anuário Estatístico da Defesa Nacional

Note-se, que nos seis anos decorridos, a verdadeira economia de recursos humanos assenta, essencialmente, na extinção do serviço militar obrigatório (SMO) em 2003 e que, num exército moderno, onde predominam equipamentos de manuseio complexo, não são convenientes, a não ser se os recrutas estiverem dois a três anos ao serviço. A questão do SMO não se justifica tecnicamente e é curioso que na esquerda lusa haja quem defenda a sua existência; essa posição verifica-se no seio da matriz trotsko-estalinista, imbuída do mesmo espírito hierárquico dos militares e já não nos meios anarquistas, desde sempre anti-militaristas.

O SMO, do ponto de vista do sistema político também não é interessante. Convém-lhe mais ter quadros profissionalizados, uma espécie de polícia de elite, uma milícia de fiéis adestrados na defesa de patranhas patrióticas e submetidos ao espírito hierárquico e anti-democrático típico em quaisquer FA.

Voltemos ao nosso exercício. Se cada regimento tiver um quantitativo mínimo, de dois batalhões, estarão, em média, sob a ordens de cada um daqueles 12 generais, entre 600 e 3000 millitares, se for adotado o padrão do exército dos EUA. No Exército português existem cerca de 274 militares por cada oficial general (294 na Marinha e 215 na Força Aérea); assim sendo, estamos numa situação de um enorme excedente de generais e, eventualmente de oficiais e sargentos, atendendo ao número de soldados existentes. Ou, na lógica militarista, seria preciso recrutar cerca de 22000 soldados adicionais para justificar tantos oficiais generais.

Ora, se tecnicamente, um batalhão é comandado por um major ou um tenente-coronel e comporta um mínimo de 300 homens, o número de generais existentes em Portugal dá para cada um dirigir um batalhão com aquela dimensão, cabendo perguntar em que se ocuparão majores e tenentes-coronéis.

Indicadores





Total
Marinha
Exército
Força Aérea
sargentos/oficial
1,63
1,80
1,68
1,43
praças/sargento
1,73
1,95
2,02
0,97
total/general
262,85
292,76
272,55
213,85
oficiais/general
48,08
46,30
44,92
56,09
sargentos/general
78,57
83,48
75,32
80,06

Em 1974, quando o volume de militares no Exército atingiu a maior dimensão – havia 41 generais e 42438 praças (1035/general) de acordo com a “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, de Themudo Barata[13]. Tendo em conta o número de praças em 2009 e a manter-se como válida a proporção observada em 1974, o excesso atual de generais seria da ordem dos 50, sem esquecer a paralela redução a considerar entre oficiais e sargentos.


6.      O papel das FA: fazer face às ameaças externas, evitar a “anarquia” e instrumento de política externa

“O papel constitucionalmente previsto para as forças armadas é o correto, a meu ver. Em primeiro lugar têm de fazer face às ameaças de natureza externa aos nossos interesses (pode não ser apenas ao território nacional); em segundo, são o último garante da segurança dos cidadãos e garantia do funcionamento das instituições democráticas (o caso de haver uma grande convulsão no país, as FA têm por missão impedir que o país se transforme numa anarquia; em terceiro é o de servir como instrumento da política externa do Estado.”[14]

Sobre a primeira função referida, já referimos atrás que não há ameaça externa e acrescentaremos que, a haver, o povo português saberia encarar essa situação auto-organizando-se para o efeito, não precisando em permanência de uma cara casta de pessoas preparados para essa emergência, tão provável como uma chuva de rãs. Aliás, estando Portugal tão bem dotado de serviços secretos, constituidos por esmerados leitores de jornais e traficantes de informações pessoais, certamente se saberá com antecedência de qualquer ameaça externa sobre o país.

O segundo papel das FA, não está minimamente a ser cumprido pois a segurança das pessoas está especialmente posta em causa pelo governo, pelo PS/PSD e, até agora nenhuma intervenção foi verificou da parte das FA que assistem, impavidamente, ao saque da multidão pelo partido-Estado, sob a direção da troika, com acelerado empobrecimento coletivo.

Quando as instituições são ocupadas pela classe dos mandarins, em proveito próprio, da minoria de capitalistas e com o pagamento das elevadas rendas de suserania ao capital internacional, essas instituições deixam de ser democráticas. A credibilidade das instituições em Portugal é muito baixa e o desmoronar da democracia e da economia, com uma humilhante e acelerada quebra da soberania, configura aquilo a que Loureiro dos Santos chama anarquia. Essa subversão da democracia por parte do governo e do PS/PSD não motiva as FA a intervir na defesa da multidão, revelando-se assim no seu papel de milícia ao serviço do regime cleptocrático gerido pelo partido-Estado contra a multidão; os militares apenas se mostram em antagonismo face ao governo no que se refere aos seus interesses de casta, mormente no capítulo salarial e das vantagens corporativas.

As convulsões no país, a transformação deste numa “anarquia” estão no terreno, terreno em que cada um é conduzido a um salve-se quem puder, uma vez que as funções sociais, de solidariedade coletiva, estão a ser reduzidas ou anuladas, com a defesa propagandistica do “empreendorismo” como via dourada para a criação de “billgates”, em cada aldeia ou rua da velha Lusitânia.

Disciplinada, se não servilmente, as FA cumprem as missões apontadas pela governação PS/PSD, por delegação do Pentágono/Nato, missões que em nada se relacionam com o jugular de ameaças ao povo, à sacrossanta soberania nacional ou sequer para a construção de uma comunidade humana mais segura e solidária. Como é sabido e já foi referido, trata-se de missões muito subalternas, enquadradas em interesses estranhos a Portugal ou mesmo potencialmente nefastos.

A presença no Kosovo serve a instalação de um perímetro de vigilância dos EUA nos Balcãs, de proteção a tráfegos mafiosos diversos, numa área onde os interesses da pátria lusa não são dos mais ponderosos. No Líbano, o Hezbollah tem sido mais eficaz na contenção da racista entidade israelita do que os observadores da ONU. E a fragata que, por vezes, patrulha a entrada sul do mar Vermelho pretende mais controlar (a favor dos EUA) as rotas do petróleo e comerciais vitais para a Europa e para a Ásia do que proteger uma área que navios portugueses pouco frequentam. A Marinha brilhou intensamente quando interceptou um barco de borracha com cinco “piratas” em águas internacionais mas, tal resplandecência que dará direito a medalhas aos seus participantes, é um exercício demasiado caro. Estas, entre várias outras missões ao serviço do Pentágono/NATO que seria fastidioso enumerar.

O caráter das FA é revelado por fonte tão insuspeita como a embaixada norte-americana em Lisboa, de acordo com documentos classificados, divulgados pelo Wikileaks. Incluimos aqui tais deliciosos testemunhos[15] lamentando-se que os jornalistas não tenham solicitado comentários a Loureiro dos Santos sobre isso:

O Ministério da Defesa português "move-se pelo desejo de ter brinquedos caros" diz um dos telegramas da embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, que faz parte do pacote de 722 documentos libertados pelo site Wikileaks e que o jornal "Expresso" vai publicar a partir de hoje. "O Ministério compra armamento por uma questão de orgulho, não importa se é útil ou não".

"Os militares têm uma cultura de statu quo em que as posições-chave são preenchidas por carreiristas que evitam entrar em controvérsias, em vez de serem preenchidas com pensadores criativos, promovidos pelo seu desempenho", diz um telegrama de 5 de Março de 2009. "Espera o tempo suficiente, dizem-nos os oficiais, e chegarás a coronel ou general. Esta cultura fomenta um pensamento adverso a correr riscos e um corpo de oficiais superiores para quem adiar uma decisão é quase sempre a melhor decisão".

Ainda no campo do ridículo, recordamos que em princípios de 2011 foi divulgado o desaparecimento de algumas armas na Carregueira, no Centro de Tropas Comandos. Para o efeito foi elaborada uma investigação que contou, segundo o jornal Sol, com a «participação técnica de uma empresa afecta à área de segurança». Ora as FA, designadas legalmente para zelar pela segurança da ditosa pátria, precisam do recurso a uma empresa para uma peritagem num caso tão “complexo” como este?

Tratando-se - os comandos - de tropas de elite ressuscitadas em 2003, eventualmente para colaborarem na cruzada “anti-terrorista decretada por George W. Bush aos vassalos, em vez do estribilho guerreiro de "Mama Sumae" ("Aqui estamos, prontos para o sacrifício!") poderiam entoar um “Kama Sutra”, decerto menos demencial e mais saudável; e, entretanto aprendiam a tomar conta do armeiro…


7.            A participação das FA na “diplomacia económica”

A presença de tropas “pode trazer contrapartidas de natureza económica ou de representação externa, além do prestígio. Nós somos um fornecedor de segurança[16]

Há alguns anos foi inventado o termo “diplomacia económica”, de maior intervenção dos diplomatas na promoção da imagem e das exportações portuguesas e uma quebra da imagem de embaixadores, peritos em línguas e boas maneiras, protagonistas do que se chamou “diplomacia do croquete”. Todos se recordam dos magotes de “empresários” que passaram a acompanhar o PR nas suas viagens oficiais. Mas, servem também (Seixas da Costa) para se empenharem na entrada na Sorbonne de Sócrates, depois de uma primeira recusa.

De acordo com Loureiro dos Santos, a presença de tropas algures é um prolongamento dessa diplomacia económica. Sobretudo porque a sua presença se efetiva onde nem sequer há embaixada lusa mas, infelizmente, em regiões onde as populações empobrecidas e divididas por conflitos não estão aptas a adquirir bens portugueses nem a passar férias no Algarve.

Dispensamo-nos do trabalho de ir buscar a lupa para ver o aumento de exportações portuguesas para o Afeganistão, o Líbano ou a Somália; e quanto ao prestígio, cremos que não é parâmetro utilizado pelas agências de “rating”; ou se é, não evita que a dívida portuguesa e os estupendos bancos lusos sejam rotulados de “lixo”. Quanto ao fornecimento de segurança, o episódio das armas na Carregueira e o estado lastimoso do universo Empordef[17] revela o ridículo do “sector militar industrial português”.


8.      As  FA e a proteção civil

Os militares podem e devem efetuar operações que chamamos de interesse público, como o apoio no combate aos incêndios, catástrofes, busca e salvamento, que têm condições e equipamento para fazer[18]

Todas as emergências referidas cabem inteiramente no âmbito da proteção civil que detém um dispositivo próprio e especializado, para ocorrer a essas catástrofes, envolvendo quando necessário, meios agora administrados pelas FA. Se as FA têm meios que podem ser utilizados nas ações referidas, eles devem ser transferidos para as estruturas da proteção civil, pois não faz sentido a sua integração nas FA, que têm funções distintas. Percebe-se, pelas palavras do general, que as FA querem manter ou alargar o seu perímetro de atuação além das funções militares propriamente ditas – proteção civil, GNR, polícia – como forma de ocupação da oficialidade e de aumento do peso político e influência da casta.

Aliás, num contexto de extinção das FA, como defendemos, algumas das suas estruturas atuais seriam sempre transferidas para o âmbito da proteção civil, como seja o equipamento de busca e salvamento no mar, uma vez que essas operações não têm uma componente militar.


9.            As FA e as intervenções dentro do país

“A Constituição só prevê três situações - guerra, estado de sítio ou estado de emergência. Ultimamente existem uma série de ameaças relacionadas com o terrorismo, a grande criminalidade organizada e os guetos que poderão exigir operações com militares, quando as forças de segurança não têm capacidades suficientes para fazer face a esses problemas.”[19]

Já sabemos que em caso de invasão do território pátrio por um exército inimigo, as FA cumprirão briosamente o seu dever. E, como todos sabemos que esse cenário tem uma probabilidade mínima de acontecer, encontramos aí uma boa razão para o crónico sub-equipamento das FA e para a poupança financeira correspondente. Pese embora o caso dos submarinos, dos Pandur ou dos carros com proteção balística encomendados a propósito da cimeira da Nato em 2010.

Quanto aos estados de sítio e emergência, nos termos descritos na lei 44/86 de 30/9, o segundo cabe totalmente no âmbito da proteção civil, sendo uma aberração as FA deterem meios que caberiam nas funções da proteção civil.

No contexto do estado de sítio, admite-se a intervenção das FA em atos ou ameaça de atos de força ou insurreição que ponham em causa a soberania, a independência, a integridade territorial ou a ordem constitucional democrática, perante os quais as vias militares se tornem o único instrumento de jugulação.

Como se vem observando, a soberania e a independência vêm sendo reduzidas, mais recentemente com o memorando da troika como antes, com os tratados de adesão à UE, Maastricht, Lisboa, adesão ao euro e, em breve, com a perda da autonomia na política orçamental. Como nada disto surgiu justificando o decreto do estado de sítio, com a correspondente intervenção militar, as FA aceitam a vontade expressa do partido-Estado, a recusa sistemática de discussão pública e referendos, e mantêm-se sem intervir, fiéis a uma interpretação literal do texto constitucional, longe da que é protagonizada pelo poder e pelas instâncias que controla – AR ou Tribunal Constitucional. As FA tornam-se, portanto, coniventes com a real subversão, com as imposições anti-democráticas praticadas pelo PS/PSD, em prejuizo da esmagadora maioria da multidão e evidenciam-se como milícia ao serviço do sistema cleptocrático.

Meses atrás foi sugerido que a Grécia alienasse ilhas do seu território para colmatar as suas dificuldades financeiras e apaziguar os “mercados”, seguindo-se uma reação negativa do povo grego e do governo. Se no contexto de um agravamento da pressão do capital especulativo, for sugerida a venda de uma parcela do território português – uma ilha açoriana, por exemplo – qual será a atitude do subserviente PS/PSD, mormente do invertebrado acéfalo que se designa por PPC? E que fariam as FA entre um atentado à integridade territorial e a não declaração do estado de sítio? Na nossa opinião, só reagiriam se a troika lhes fechasse as messes.

No quadro militar, o tratado de Lisboa estabelece (artº 42º/46º) obrigações e limitações nos capítulos da defesa e segurança e, nem nesse âmbito, as FA intervieram pois, de facto… não foi decretado o estado de sítio.

Perante a atual situação de ingerência externa - ainda que não armada e mais adequada ao quadro de primado das relações de dominação económica sobre as de dominação militar, como configurantes do domínio político - as FA não reagindo, incumprem o que deveria ser o seu papel. Perante a tomada do poder por uma seleção do que há de mais reles dentro do partido-Estado, PS/PSD e a aceitação por parte deste da referida ingerência e condicionamento externo, em grave prejuizo da esmagadora maioria do povo, as FA estarão a cumprir o seu papel?

Não estão e por razões bem objetivas. Primeiro porque as FA são essencialmente uma milícia do regime cleptocrático instalado o qual, contudo, se mantém atento ao estado de espírito da oficialidade (sargentos e praças não têm relevância política, dentro de uma estrutura tão fortemente hierárquica como as FA), inscrevendo no orçamento algumas verbas para a aquisição de uns quantos brinquedos bélicos e alegrar assim os generais. Segundo, porque a integração subalterna de Portugal na UE/NATO e a adopção do modelo de democracia de mercado, não comporta a possibilidade de um golpe militar, como acontecia com os pretorianos de Roma.

Tudo isto revela o caráter das FA, como instrumento do poder capitalista e do regime cleptocrático que se encobre por detrás da democracia de mercado; esta, por seu turno, como pechisbeque da democracia. Por isso, não alimentamos quaisquer ilusões sobre uma intervenção das FA a favor dos interesses do povo, nem esperamos um golpe de estado ou qualquer pronunciamento salvador levado a cabo pela casta militar que aponte para a falta de legitimidade do atual poder em Portugal. O que aconteceu em 25 de abril de 1974, foi algo que se não repete e que aconteceu em circunstâncias históricas muito particulares, sendo perigosamente ingénuo acreditar que as atuais FA protagonizem um golpe semelhante contra o partido-Estado.

Como consequência disso as FA apenas fazem ouvir o “tinir das espadas” ou arrotam alto quando lhes tocam no pré e nas regalias, não parecendo preocupadas com a falta de respeito das instituições do capital especulativo para com o povo de onde – dizem – dimanam os bravos militares.


10.  As FA e as ameaças transnacionais

É possível as Forças Armadas fazerem face, em território nacional, a ameaças transnacionais. Mas o que são ameaças transnacionais? Não se sabem bem, é uma terminologia que não vem na Constituição.”[20]

Com a ideia lançada, a título exemplificativo, de um kamikaze que se atira sobre o papa em homília no estádio do Restelo, Loureiro dos Santos defende a prática da segurança absoluta… que não existe. E, aproveita o exemplo, para valorizar a importância da casta militar junto da plebe, avançando com um novo “estado de crise” a somar aos já definidos (guerra, emergência e de sítio), para agilizar a prática de atos de guerra e “a restrição de direitos, liberdades e garantias”. Algo muito para além da suspensão das regras Shengen nas fronteiras portuguesas quando Obama e os seus gauleiter da NATO estiveram em Lisboa, em 2010.

Essa ideia delirante da segurança absoluta é facilmente anulada pelos factos. Em setembro de 2001, os atentados nos EUA não foram evitados pelos espantosos meios militares e das 17 agências de segurança que concorrem nos EUA; a sua ineficácia foi tanta que muitos consideram que tudo foi orquestrado para o posterior lançamento das intervenções militares no Médio Oriente. Com ineficácia ou calculada premeditação  do chamado 11 de setembro saiu a promoção da “guerra contra o terrorismo”, como instrumento, precisamente de “restrição de direitos, liberdades e garantias”. Do mesmo modo, não foram evitados os atentados na Atocha ou no metro de Londres, como o não foi o assassinato de John Kennedy, então o homem mais poderoso do planeta. Provavelmente, o general anda a ler as obras escolhidas do prestigiado George W. Bush…

Nos anos 80 um grupo de arménios atacou a embaixada turca em Lisboa e foram os grupos de operações especiais da polícia que intervieram; não as FA. Aliás, “estão previstas acções policiais nos mais de 300 bairros problemáticos identificados em todo o país, situação que, de resto, até foi salientada recentemente pelo comandante da Unidade Especial de Polícia (UEP), intendente Magina da Silva”[21]. Contudo, os valorosos actos do Magina têm-se limitado a cercar manifestantes pacíficos numa manifestação contra a NATO em 2010, a disparar em Setubal, em 2011, contra gente desarmada e a espancar os ativistas da Es.co.la ou fotógrafos-jornalistas no Chiado, recentemente. Irá, certamente ser medalhado no dia da “raça” pela figura pública mais ridícula do país.

Por outro lado, um país e um povo, sem forças armadas, que decrete a sua não integração em alianças militares, que pugne por um quadro internacional de coexistência pacífica e de transparência nos movimentos de capitais, não deverá aceitar a visita de chefes de estado de países (?) anti-democráticos e mafiosos, como o Vaticano.

Talvez falte uma definição jurídica do que são ameaças transnacionais. E isso, devido à porosidade entre espaços nacionais e internacionais, no contexto do esbatimento das soberanias nacionais, decorrente da globalização e ainda das necessidades do argumentário diplomático do dispositivo militar-estratégico ocidental. Pretende-se, precisamente fornecer um quadro pouco claro, difuso, que permita a flexibilidade de atuação daquele dispositivo.

Por outro lado, o esbatimento das soberanias nacionais facilita os esforços de integração entre forças militares, policiais e serviços secretos, em curso no contexto NATO/UE, superiormente dirigido pelo Pentágono.

Gostariamos de sossegar o general Loureiro dos Santos, libertá-lo dessa preocupação de definição constitucional. Com ou sem essa definição, certamente a desenvolver por uma dessas sociedades de advogados que parasitam o erário público, as FA portuguesas estão integradas numa cadeia de comando dirigida no Pentágono e este, pouco se importará com preciosismos jurídicos dos estados vassalos, com FA operacionalmente irrelevantes.


11.        Os gastos dos países europeus com a defesa

O nosso cabo de guerra não tem razão quando diz que a Europa só contribui para a NATO com 20% dos gastos da aliança. Em 2010, os países europeus da NATO representavam 19.4% dos gastos mundiais com a defesa contra 42.2% dos EUA; pelo que a Nato-Europa contribui com pouco menos de um terço do total dispendido pela organização.

Na realidade, a maioria dos países europeus gasta com a defesa entre 1 a 2% do PIB. Portugal, ultrapassava a maioria, em 2008, com 1.67%[22], só sendo superado pela França, pela Grã-Bretanha, ambas potências nucleares e com pretensões a um papel na geopolítica; pela Grécia, possuidora dumas FA com um volume disparatado, a Itália e a Noruega.

Ainda no quadro da NATO, somente seis países tiveram os gastos militares com um crescimento superior ao do PIB, no periodo 1998/2008 – Letónia, Lituânia e Eslovénia, em virtude da substituição de equipamento por outro, com o selo ocidental, o Canadá, os EUA e… Portugal. Não têm, portanto, muitas razões de queixa os militares portugueses; o PS/PSD tem sido amigo embora não lhes tenha posssibilitado um luxo grego quanto a gastos com a defesa.


12.        Os pesadelos do general curam-se com mais gasto militar

A alteração do quadro estratégico exigirá aos europeus mais meios e mais esforço do que até agora[23]

De facto, a prioridade dos EUA é o cerco da China, com o controlo possível das fontes energéticas e dos seus canais de distribuição, exigindo, por consequência, que seja a Europa a cuidar dos meios militares para exercer a sua suserania e superioridade militar na bacia do Mediterrâneo.

Verificou-se, perante uma presa fácil como a Líbia, as dificuldades do dispositivo europeu, só dignamente (em termos militares, esclareça-se) representado pelos Rafale franceses, sabendo-se mesmo de um periodo de falta de munições, por parte dos membros europeus da NATO[24]. É patente que qualquer êxito ocidental depende essencialmente dos meios envolvidos pelos EUA, a única potência mundial com uma atuação global.

A grande diversidade de posicionamentos relativos à defesa, existentes entre os países da UE, junta-se à aguda crise financeira, à recessão que atinge muitos dos membros, ao desemprego que absorve recursos públicos e à consciência pacifista e anti-militarista em alguns países; esse conjunto de razões provoca dificuldades aos governos europeus para se envolverem seriamente em guerras e aventuras militares.

A questão essencial, porém, é a da legitimidade europeia para intervir no norte de África, nos Balcãs ou na Síria, ou para se dotar de meios para o efeito. O nosso general revela a sua total imersão na lógica imperial, na estratégia dos EUA, como prolongamento ideológico do colonialismo europeu saído da Conferência de Berlim, de 1895, de partilha da África. Loureiro dos Santos alerta mesmo para um regresso à pirataria no Mediterrâneo, como no século XVIII, o que representa delírio ou humor. Podemos informar que o bey de Argel não está de regresso e que não “há mouro na costa” como refere o general; a não ser os que fogem à fome e morrem afogados no mar das Canárias ou de Lampedusa.


13.  A visão da Europa, da Alemanha e da austeridade

Ficamos a saber que em termos de estratégia militar, a Alemanha não tem profundidade territorial nem barreiras naturais contra invasores a oeste e a leste e que para o efeito a crise da dívida é uma oportunidade de se dotar de acesso aos mares. Uma olhadela ao mapa da Europa mostra que não há montanhas entre as Ardenas e os Urais mas, foi bom o general recordar-nos da geografia.

De acordo com o general, a capacidade exportadora da Alemanha com a geração de receitas e a sua colocação posterior como dívida a bancos e Estados da zona euro faz-se, não como forma de capitalização mas, como forma não guerreira de atingir as praias ocidentais e meridionais da Europa!  Neste contexto, a austeridade imposta aos PIIGS, não resultará tanto dos receios quanto ao reembolso dos créditos concedidos pelos bancos alemães (e não só) e a manutenção da sangria mas, como instrumento de ganho de profundidade estratégica, em termos militares. Note-se que a Alemanha reduziu o peso dos gastos com a defesa, de 1.72% do PIB em 1998 para 1.34% dez anos depois; e que os países que rodeiam a sua orla fronteiriça apresentam parcelas ainda mais baixas, não parecendo ter um receio militar dos alemães.

Ora, o interesse da Alemanha com a UE e a eurozona é porque a integração económica e monetária é imprescindível para os capitalistas alemães e para os seus bancos. A última coisa que a Alemanha pretende é o esboroar da UE ou da eurozona como aliás é referido em relatório recente[25].

Loureiro dos Santos é pouco original quando afirma que a Grécia (e por extensão os PIIGS) não têm alternativa aos planos de resgate, à austeridade e a sua imolação como constante ração para o capital financeiro. Para o general a alternativa é a anarquia… que para um militar significa apocalipse.

Contudo, o general, reconhecendo que Portugal não tem soberania, acredita na sua recuperação através da afirmação como país-ponte com todos os continentes e, subsequentemente, poder, a prazo, decidir em qualquer momento se quer ou não sair da UE. Loureiro dos Santos não explica nada sobre os meios para criar essas pontes dirigidas a todos os azimutes.

E considera que o regresso ao controlo das contas públicas dá a Portugal a possibilidade de sair da UE! (Mas se recuperarmos a capacidade de manejar as nossas contas públicas, mesmo mantendo-nos ligados á EU, temos capacidade para sair a qualquer momento.)[26]. Para o general tudo é possível quando a troika regressar a casa; o que revela uma visão estratégica pejada de ignorância.

Há já vários séculos que Portugal tem soberania limitada e, essa limitação tem vindo a aumentar no quadro da integração ibérica, europeia e global. A globalização, gerando a integração de economias interdependentes, ligações estreitas entre povos e culturas, tem vindo a abalar o quadro das soberanias nacionais criadas no século XVIII e criando apenas viabilidade a grandes espaços e populações. A crise atual, encerra um capítulo da perda de autonomia das nações europeias e, particularmente dos seus capitalistas; depois da perda da afirmação das política industrial, financeira e monetária, o próximo passo é o da política orçamental. Por isso, a não ser que a UE se dissolva ou Portugal seja excluido por qualquer mecanismo a criar, a saída da UE não é um cenário que favoreça a multidão em Portugal. Este país não tem dimensão territorial e económica para sobreviver fora do referido quadro plurinacional, no mínimo ibérico; nem sequer tem capitalistas evoluidos ou uma classe política capaz, que não de exibir a sua subserviência.

Contudo, Loureiro dos Santos parece ter nostalgia de uma pátria, com fronteiras, soldados e polícias para as defender, capitalistas beneficiando de controlos alfandegários e do apoio do Estado para a existência de baixos salários, poucos direitos, uma moeda própria que ninguém quer, desvalorizações competitivas, inflação e muita porrada na cabeça dos trabalhadores. É evidente que nesse cenário o papel da tropa sairia reforçado, como tanto defende o seu mais famoso “think-tank”.


14.         As FA e o serviço cívico

“As Forças Armadas têm de atrair jovens, mas não só. Uma das coisas que têm de se fazer é a pedagogia para o interesse e importância das FA… Há duas formas. Uma é através do estabelecimento de um serviço cívico nacional”[27]

A importância da entrada de jovens para as FA compreende várias questões.

A crescente dificuldade na obtenção de empregos poderá atrair jovens para as FA, como um emprego qualquer; porém, muitos, também são empregos por prazo certo, a contrato, insusceptíveis de alicerçar um projeto de vida, um mero expediente temporário para sobreviver. Em termos de carreira, parece mais garantido o ingresso num seminário… pois ainda não haverá padres a contrato.

Testemunhos recolhidos mostram uma grande indiferença pela vida militar por parte dos jovens chamados a integrar o “Dia da Defesa Nacional” que, na realidade se prolonga por meses, para entreter muitos militares, na promoção da instituição. Os jovens escutam os discursos sobre as maravilhas da vida militar, da camaradagem, da formação recebida mas, poucos se mostram interessados na integração numa estrutura autoritária; por outro lado, a formação recolhida de pouco serve para o trabalho na vida “civil” que não para segurança de discoteca. No caso dos oficiais não será bem assim mas, como vimos atrás, os quadros estão repletos de gente desnecessária.

Se não há equipamentos que justifiquem mais militares ou melhor, se estes já são excedentários para os equipamentos existentes e para as reais necessidades de defesa do país, a entrada de novos militares serve apenas para engrossar o séquito dos generais e aumentar a sua vaidade, como aliás se denota nos despachos da embaixada dos EUA, transcritos no Wikileaks, referidos neste texto.

Há ainda questões civilizacionais e éticas que interessa acautelar num ingresso de jovens nas FA. A formatação patrioteira, anti-universalista incutida nos jovens é, em absoluto, contrária à diluição dos Estados em espaços geopolíticos muito vastos, à multiculturalidade, à construção de cidadãos do mundo. A lógica militarista visa a divisão entre povos, para gerar o Outro, o inimigo e não pretende unir, gerar igualdade e solidariedade na Humanidade.

A doutrinação contra o Outro, o IN, decretada pelos estados-maiores e, definida pelos estrategas do Pentágono pretende-se seja absorvida pelos jovens militares, tornando-os dóceis intérpretes e agentes dos interesses dos EUA, da NATO e do capitalismo global. Essa doutrina é objetivada em palavras com forte carga negativa, como islamita, africano, guerrilheiro, manifestante, sindicalista, anarquista, todos tomados como ameaças. E essas ameaças têm de estar sempre presentes ou mesmo exacerbadas porque justificam a própria existência de FA e a dedicação dos seus membros. A existência de FA é sempre uma ameaça para a paz.

Acrescente-se ainda que os jovens de hoje tendem a assumir uma postura pacífica de resolução dos conflitos e dos problemas que é contrariada na instrução militar. Por outro lado, a inclusão dos jovens numa estrutura rígida de hierarquia, autoritária, é uma forma de gerar seres obedientes, pouco afirmativos ou confiantes, caraterísticas que, no futuro podem ser perfeitamente utilizadas por patrões cúpidos e despóticos, normalmente, em proporção inversa das suas capacidades de gestão. Um jovem cabo que conhecemos, recentemente regressado de uma comissão no Afeganistão, evidenciava teses absolutamente disparatadas sobre Espanha, certamente fruto da incompreensão do que lhe transmitiram na instrução, admitindo-se que ali deverão vigorar as teses que Loureiro dos Santos evidenciou nas entrevistas aqui analisadas.

Curiosamente, a introdução de mulheres nas FA, em vez de ser tomada como um alastramento do militarismo e mesmo de um parasitismo social inerente às FA, foi tomado por alguns como um veículo de construção da igualdade de géneros, numa visão reacionária e canhestra do feminismo. Finalmente, sendo o patriarcalismo uma tara civilizacional profundamente enraizada nas sociedades, as FA oferecem um importante contributo para a sua perpetuidade.

Neste contexto, cabe perguntar onde está, na esquerda portuguesa ou nos meios pacifistas, uma atitude coerente e persistente de defesa da extinção das FA, como foco de gastos públicos inúteis, de infeção social com autoritarismo e patriarcalismo, de promoção da defesa da guerra como modo de resolução de conflitos. A esquerda portuguesa é omissa contra o militarismo e, mesmo em muitos dos seus militantes, há um espírito de tolerância ou mesmo de admiração pelo papel das FA. Resumem-se, a tomar atitudes isoladas de repúdio da NATO e do imperialismo, por obrigação política conjuntural, de protesto na defesa da “soberania” nacional, mesmo que para isso tenham de pactuar com a direita no poder e a polícia para isolarem sectores mais avançados e anti-militaristas na sociedade portuguesa que lhes possam retirar protagonismo[28].

Por outro lado, um serviço cívico, a existir, não implica a sua inclusão dentro de uma lógica militarista, no âmbito e na dependência das FA. Ele existe em países como a Alemanha, a Áustria, Chipre, Finlândia, Noruega, Suécia e Suíça e insere-se nas áreas da intervenção social, da reabilitação urbana, da protecção ambiental, como instrumentos de consciencialização social dos jovens. Não simpatizamos com serviços cívicos uma vez que, no contexto português, representariam provavelmente um dispêndio público com a colocação de dezenas de milhar de jovens a prestar trabalho gratuito, por exemplo para autarcas corruptos ou patrões mafiosos. Não reconhecemos qualquer legitimidade à prestação de trabalho não voluntário sem uma remuneração digna; seria mais uma forma expedita de parceria público-privada.


15.        As FA como escola de valores

O estabelecimento de um serviço cívico “Seria uma forma de fazer os jovens contactarem com instituições públicas ou privadas que implicassem o espírito de missão, solidariedade, a disciplina, o valor da autoridade, a persistência na acção. Todos esses valores que, de certa maneira, o Serviço Militar Obrigatório dava, mas que hoje em dia um jovem entra na vida sem ter uma preparação desse tipo[29]

Admiramos a frontalidade do general na defesa de teses como esta. Uma vez mais sobressai a visão conservadora da matriz cristã, do espírito de missão (que subjaz sacrifício), da disciplina e do valor da autoridade (que se traduzem na defesa de uma sociedade de ordens onde cabe a uns obedecer e a outros exercer o direito de decidir e ordenar). Nada há que compreenda princípios democráticos de diálogo, de decisão, de representação, de igualdade entre as pessoas.

Presume também a existência de instituições públicas ou privadas que sirvam de veículo à transmissão de tão “nobres” qualidades; mesmo no conceito enviezado proposto pelo general. As instituições públicas ou privadas são espaços de promoção da competição, do individualismo e não da solidariedade. A disciplina e a autoridade apresentam um cariz persecutório, desvalorizador do trabalhador, onde rapidamente se observa que o mérito ou a capacidade não são elementos preponderantes para a assunção de responsabilidades, preferidos pela subserviência ou o cartão partidário. A disciplina e a persistência na ação são exigidas, não com objetivos sociais mas, de apresentação de resultados ou da acumulação de lucros, onde os trabalhadores em nada participam. As instituições públicas ou privadas não são espaços democráticos, são espaços repressivos de reprodução de relações de dominação e do modo capitalista; não são ambientes socialmente saudáveis onde a responsabilidade, a honestidade, o mérito possam ser apresentados como valores a enformar a personalidade dos jovens.

Loureiro dos Santos acreditará mesmo que a passagem pelas casernas no âmbito do SMO era mesmo um indutor de valores de civismo e solidariedade? Ou seria apenas uma ocasião para os recrutas sentirem o peso das ordens – bastas vezes dadas por superiores sem qualquer qualidade ou conhecimento – emitidas sob os auspícios dumas figuras amarelas assentes nos ombros? A repressão latente por motivos fortuitos, como a bota engraxada, o tamanho do cabelo? A humilhação pública perante as dificuldades diante de um exercício físico? O constante recurso ao machismo? A defesa do individualismo na solução dos problemas comuns, da competitividade, mais não fazia que a preparação para a aceitação do futuro patrão ou capataz. O SMO funcionava como uma escola de obediência, de subordinação, de “desenrascanço” individual e não da geração de um espírito de gestão coletiva dos problemas e de solidariedade. Quantos dos que passaram por um SMO guardam do mesmo uma recordação global satisfatória ou consideram ele não ter sido um frete, um tempo perdido?

O SMO nasceu no processo de criação das nações, como factor gerador de um espírito patriótico que fizesse os jovens aceitar a existência e a defesa dessas prisões de povos chamadas nações, para benefício das respetivas burguesias. O SMO está morto e não voltará, por razões que se prendem com o diluir das nações em espaços políticos alargados; por razões técnicas ligadas à complexidade dos equipamentos; e, porque os poderes preferem ter nas FA legiões de centuriões, escolhidos como fiéis defensores dos regimes cleptocráticos em detrimento de jovens não verdadeiramente integrados na lógica militarista.

Loureiro dos Santos, imbuído de lógica militarista, não consegue imaginar jovens sem uma passagem pela instituição militar, nem que seja por uma semana, seguidos de seis a oito meses em áreas civis; mesmo com uma provável inclusão em fórmulas de trabalho gratuito, tal como se está a configurar, hoje, para os beneficiários do RSI, para muitos desempregados ou estagiários que, na prática, prestam serviços a empresas privadas, pagos com dinheiros públicos e manutenção de uma vida de precariedades.

Uma fórmula mais complexa proposta pelo general baseia-se no modelo americano em que os jovens universitários recebem, a tempo parcial, formação militar, com alguns exercícios por ano. Essas pessoas ficam definidas como reservistas, que tanto podem colaborar em milícias estaduais, em ações de proteção civil, como também na guerra. Na prática, o esquema consiste numa latente militarização da sociedade, cujos membros estarão sempre disponíveis para servir a pátria amada, sob o efeito de qualquer ameaça real ou fictícia como, por exemplo, o da “luta anti-terrorista”. No caso dos EUA, o adestramento militar, juntamente com a facilidade na compra de armas torna possível uma verdadeira paranóia pela posse e uso de armas, mesmo de guerra.

De acordo com Loureiro dos Santos, os jovens teriam a (imensa) “vantagem de ficar a conhecer as FA” e contribuir para a manutenção de um enorme e caro corpo de indivíduos dedicados a manter uma vida descansada, procurando justificações fantasiosas e ridículas para a sua existência como casta.

Na opinião do general estratega, esse serviço cívico “poderia mitigar ou facilitar a resolução do problema do desemprego, nomeadamente o desemprego jovem.” Nada disso. O serviço cívico seria uma forma adicional de esconder o desemprego, de adiar a inscrição nas listas do IEFP, tal como acontece com muitos cursos de formação, hoje. Estes,  constituem uma forma de utilização de recursos comunitários e manutenção de uma fábrica de ilusões – uma formação nem sempre valorizada, que não é susceptível de gerar emprego, como forma estável de inserção social e com salários dignos, incapazes de alicerçar um projeto de vida.

Recentemente, em viagem no distrito de Coimbra, observámos umas dezenas de jovens e menos jovens a cortar ervas e arbustos nas bermas de uma estrada ou a cavar a terra, no âmbito de uma formação ministrada por um centro do IEFP, próximo. Entretanto, a câmara beneficiou de um trabalho pago pelo IEFP.

Alguém acredita que a câmara local vai recrutar estavelmente aquelas pessoas? E se o fizer, o salário irá permitir uma vida digna aos recrutados? E, mesmo nesse contexto, vai contratá-los diretamente? Ou preferirá o recurso a um “prestador de serviços”, parasita que ficará com cerca de metade do pagamento efetuado pela câmara?

Decididamente, a realidade social é algo para o que o general olha de modo bastante distraido.

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[2]   Dá o nome a uma JPAB – José Pedro Aguiar Branco e Associados, RL, sociedade de     advogados com atividade em quase todos os ramos do direito  (http://www.jpab.pt/Index.aspx)

[3]      http://www.portugal.gov.pt/pt/os-ministerios/ministerio-da-defesa- nacional/mantenha-se-atualizado/20120605-mdn-conceito-estrategico.aspx
[8]    A ideia de uma invasão espanhola moderna é curiosamente agitada por Garcia Pereira, a figura de proa do MRPP, instituição muito patriótica desde sempre. Garcia Pereira, refere-se a um plano de invasão de Portugal elaborado em … 1940 mas, só revelado sessenta anos depois. Anota o jurista que a rota escolhida “coincide praticamente com o traçado do TGV defendido por Sócrates...” de Madrid para Badajoz e Elvas e daí para Lisboa passando por Évora e Setúbal; … nada que se não deduza por um estudo sumário da orografia ibérica ou dum mapa das estradas. Como essa preocupação com uma invasão espanhola – concretizável em 24 horas – foi registada em outubro de 2009, esperamos que o causídico tenha dormido nos últimos três anos sem o auxílio de soníferos.


[9] Ver detalhes em “Portugal na Segunda Guerra 1941-45” de António Telo e “Salazar” de Filipe Ribeiro de Menezes

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