13 de outubro de 2012

Crime em Lisboa

O sol acabava de nascer, a manhã estava fria. Elvira sentou-se no banco de pedra e chamou pelo nome os pombos “António, Joaquim, Abreu, Maria, Mila Serafina, Albertina...” Era assim todas as manhãs. Saía cedo, subia a calçada apanhava o elétrico e corria os parques e jardins de Lisboa. Sabia o nome de todos os pombos da cidade. Elvira trazia um gorro enfiado até as orelhas que deixa ver algumas madeixas de cabelo grisalho. O rosto sereno e as rugas acentuadas à volta da boca, deixavam adivinhar um sorriso maroto, quase infantil. O corpo rechonchudo, curvado, era suportado por uma bengala de madeira, que tinha gravado no cabo um “E” de Elvira.

No parque Eduardo VII estavam só ela e os pombos. Elvira levanta-se e no seu passo oscilante dirige-se à saída do jardim – ainda tinha que passar no mercado e comprar as verduras para a sopa. Absorvida nos seus pensamentos Elvira caminha devagar, quando tropeça e quase que cai. Os óculos que trazia sempre na ponta do nariz escorregam. Elvira a custo endireita-se, ajeita os óculos e solta um grito de horror “Ai Santíssima Virgem!”. Com as mãos a tremer vasculha no saco de plástico que trazia e, entre as migalhas de carcaça um novelo de lã, uma agulha de tricotar, encontra o telemóvel. As mãos tremem-lhe muito. Encosta o telemóvel ao nariz e marca 112.

5 minutos depois chega um carro patrulha ao parque Eduardo VII. De dentro dele saem 4 homens fardados e armados. Correm pelo parque e encontram Elvira sentada num banco de pedra, de terço nas mãos e nos lábios o bichanar de rezas e lamentos.

- Santo Deus! – Exclama o polícia mais velho, afastando-se. Porém volta atrás – Isolem o local, não deixem fotografar. Detenham a velha para averiguações... blá, blá, blá.

Depois de debitar uma serie de ordens afasta-se e telefona baixando a voz. Quase que em simultâneo chegam uma ambulância, vários carros de policia e um pouco mais tarde dois BMW negros. De um deles sai o Primeiro-ministro e do outro, o Procurador do Ministério Público.

- Credo exclama o Primeiro-ministro tapando os olhos com as mãos. O Procurador do Ministério Publico não pronuncia uma única palavra.
- Trate disto pessoalmente. Que a notícia não se espalhe! – E dito isto, o Primeiro-ministro abandona o local.

O Procurador senta-se ao lado de Elvira.

- Conte-me lá o que aconteceu.
- Pobre pequena, pobre pequena. Santíssima Virgem tenha piedade de nós.
- Não tenha medo. Venha comigo tomar um chá e conte-me o que aconteceu.

Os dois seguem pelo parque. Elvira apoiada na sua bengala, ao lado o Procurador do Ministério Publico ampara-a. Entram num carro e seguem para o Ministério Público. No Parque ficam os polícias, a vasculhar tudo. O corpo é transportado na ambulância.

No dia seguinte, como todos os dias, Elvira enfiou o gorro na cabeça pegou na sua bengala e saiu ainda o sol não tinha nascido. Na rua estava frio. Elvira calçou as luvas, aconchegou o xaile ao pescoço e subiu a calçada.

- Bom dia tio Joaquim!
- Bom dia Elvira. No passeio matinal?
- Dar umas migalhas aos pombos…
- Espere aí, leve estas carcaças.

O tio Joaquim enviou nas mãos de Elvira um saco de plástico com umas carcaças duras, enquanto os olhos de Elvira corriam os títulos dos jornais matinais.

“Crime no Parque Eduardo VII – Encontram Prostituta assassinada com sete facadas. Polícia admite que seja mais um caso do Estripador do Parque” Era capa de quase todos os matutinos.

- Ai este mundo está louco! – Exclamou Elvira, pegando no jornal – É só crimes, só crimes… Valha-nos a Santíssima Virgem – Por entre os dedos deixa correr o terço.

No seu passo cambaleante lá foi. Era um dia importante, ia falar com o Delegado do Ministério Publico.

Elvira chegou, entrou e foi gentilmente recebida pelo Procurador.

- Está mais calma? Não quer tirar o xaile? Aqui está quentinho…
- Está frio. Ai o meu reumático! Tenho quatro cruzes, as dores que não me largam, já a minha falecida mãe...
- Diga-me, viu alguém por perto? Havia adolescentes no parque? Mulheres? Viu alguém?
- Só os meus pombos. Já sabem quem matou a rapariga?
- A rapariga? Ah sim, pois claro a rapariga. Não, não sabemos. A senhora tem que responder às perguntas, precisamos da sua ajuda. A senhora está sobre vigilância judicial, não pode comentar o que aconteceu no parque.
- A minha boca é um túmulo, daqui não sai nada! Sei guardar segredos. Não vi ninguém, nem mesmo o tio Joaquim, era cedo… A não ser a actriz de cinema…
- Uma actriz de cinema?
- Uma senhora muito bonita, muito bem vestida, de sapatos de salto alto, com um vestido preto...
- Como sabe que era actriz?
- Oh sei sim senhora, era muito parecida com a Laura Alves. Como ela estava linda no Pátio das Cantigas… Aquilo é que eram filmes... E aquelas roupas? As mulheres eram decentes, não é como agora com estes vestidos sem piada. Sim, parecida com a Laura Alves, era com certeza uma actriz portuguesa.

Elvira continuou tecendo considerações sobre o cinema português, o procurador ia ouvindo, com um ar aborrecido... Quando saiu dali, Elvira apanhou o autocarro 713 e foi até ao Jardim da Estrela. Pelo caminho passou por entre os manifestantes, que como vem sendo hábito protestavam contra as medidas de austeridade.

No jardim, deu comida aos pombos e deixou-se ficar com o sol quentinho a bater-lhe nas pernas. Ao longe ouviam-se os gritos dos manifestantes. “A minha amiga Celeste trabalha ali no talho, no largo do Rato. Vou-lhe fazer uma visitinha, coitada trabalha tanto, e ainda com a mãe entrevada numa cama! Como a vida de certas pessoas é dura...”

No dia seguinte Elvira não saiu de casa, mas no outro repetiu as rotinas.

- Bom dia tio Joaquim!
- Bom dia Elvira. No passeio matinal?
- Dar umas migalhas aos pombos…

Os olhos de Elvira passaram sobre as capas dos jornais “Veneno no Parlamento – 229 Deputados à beira da morte depois de intoxicação alimentar grave. Bife servido ao almoço apontado como a causa do problema. O talho que abastecia a cantina da Assembleia da Republica foi fechado para averiguações. Ministério público levanta inquérito”

- Ai este mundo está louco – murmurou Elvira – É só crimes, só crimes… Valha-nos a Santíssima Virgem! E, por entre os dedos deixa correr o terço.

Entre murmúrios e lamentos Elvira subiu a calçada sem um destino muito certo. Andava devagar e ia vendo as montras. “Colónia de formigas? Inventam cada coisa! como se alguém fosse comprar formigas... As pessoas andam é loucas... Que mundo este!” Tirando a colónia de formigas as montras não mostravam nada de interessante. Já não se faziam vestidos com os das actrizes de antigamente. Agora, como dizia Elvira, eram estas coisas sem piada...

Toda a tarde Elvira vagueou pela cidade. Ao sol poente, entrou numa grande superfície comercial. Tinha que comprar o seu chá – quase se ia esquecendo! Correu o supermercado todo, mexendo em tudo. Na secção de produtos de higiene pessoal Elvira abriu os frascos de perfume e cheirou-os todos. Gostava de perfumes. Se ao menos a sua pensão fosse um nadinha maior...

Passados 4 dias, Elvira ao anoitecer fez o seu chazinho quentinho e sentou-se a ver televisão. Gostava de estar a par das notícias da actualidade política.

“Telejornal: A polícia procura uma misteriosa mulher que poderá estar na origem da onda de crimes políticos que nos últimos dias se registaram em Lisboa. 229 deputados morreram envenenados e o ministro da Administração Interna foi comido por formigas carnívoras. Entretanto o ministro dos Negócios Estrangeiros está desaparecido e suspeita-se que esteja morto e o primeiro-ministro acabou por falecer, ontem à noite, vítima de um enfarte depois de sair do banho totalmente careca. Ao que tudo indica, o champô havia sido trocado por depilatório… Em todos os casos foi vista uma estranha mulher vestida com roupas da década de 50, descrita como tendo enormes parecenças com a saudosa actriz Laura Alves… O Ministério Público está no encalce da mulher enigmática”

- Ai este mundo está louco. É só crimes, só crimes. Valha-nos a Santíssima Virgem.

Elvira adormeceu no sofá. Na manhã seguinte Lisboa pareceu-lhe caótica. Muita gente na rua e filas indetermináveis de pessoas a comprar jornais. Muitos polícias a patrulhar as ruas e até mesmo alguns militares. O caos era tão grande que Elvira não se atreveu a apanhar o autocarro. Ficaria por perto, iria até Belém. Há muito que não ia a Belém. Quando passou pela frente do Palácio da Presidência da Republica meteu conversa com um dos guardas.

- Ó Senhor policia o que é que aconteceu? É outra vez a revolução?
- Saia daqui, saia daqui que temos mais que fazer que aturar velhas doidas.
- A sua mãezinha não lhe deu educação? Não empurre, se faz favor, que me doem as pernas.
- Ó minha senhora sente-se ali quietinha que estamos à espera dos excelentíssimos ministros da Educação e da Saúde.
- Os que restam, os que restam. Que mundo louco. Que Deus os proteja. Olhe, vou até ali comer um pastelinho de Belém.

Com um grande aparato policial, chega ao palácio de Belém, o ministro da Saúde e o ministro da Educação. À espera deles, Sua Excelência o Presidente da Republica. A situação política era gravíssima.

Um táxi para à porta do palácio. No banco de trás uma mulher ainda  jovem, cabelo negro apanhado, um vestido preto justo, saltos altos meias de vidro e um casaco cumprido também preto. Abre o vidro do táxi e mostra um cartão ao guarda que de imediato dá ordem de passagem. O táxi segue e para mesmo em frente à porta principal do Palácio. O Mordomo abre a porta a mulher entra. Ouvem-se três tiros...

Os guardas correm à sala onde decorria o Conselho de Emergência Nacional.

- Foi a mulher – Exclama um policia – Só pode ter sido ela.
- Ou ela ou o mordomo – Deduz outro policia mais velho, lembrando-se que o culpado era sempre o mordomo.
- O melhor é telefonar para o Procurador do Ministério Publico se ainda estiver vivo.
- E agora quem vai mandar em nós?
- Desde que me paguem o ordenado quero lá saber quem manda.
- A mulher vai fugir, é melhor prendê-la.
- Para quê? Estás ralado com isso? Olha, bebe uma pinga que estes gajos viviam bem. “Barca Velha”, nem mais. Grandes filhos da puta! E tu ainda querias prender a mulher…

Calmamente, a mulher atravessa os Jardins do Palácio e sai...

No Ministério Publico o procurador entra apresado, chama os seus homens:

- Tragam-me a velha já, imediatamente – ordenou.

Um carro patrulha sai para casa de Elvira. Foi fácil arrombar a porta. Depois de uma cuidadosa busca, foram encontrados na lareira, semi queimados, uns sapatos de salto alto. Em cima da mesa um horário de comboios com destino ao Porto e um estojo de maquilhagem havia ficado esquecido numa gaveta.


Epílogo

Estação de Santa Apolónia: “Vai sair da linha numero dois o comboio Pendular com destino ao Porto…”

Maria corre na plataforma dos comboios. Vestia umas calças de ganga e o cabelo negro ondulado solto caía-lhe pelas costas. O sorriso era maroto. Maria corre, tem que apanhar o comboio e no último instante, antes das portas se fechem, dá um salto ágil, próprio da juventude e entra. Ao saltar, escorrega-lhe do bolso um terço.

- Maldita, maldita! mas eu apanho-te – Exclamava o Procurador do Ministério Publico roído de raiva, enquanto apanhava do chão o terço – Maldita, maldita! E, dizendo isto, leva as mãos ao peito, contorce-se de dor e cai de joelhos. Da boca sai-lhe uma espuma verde.

O Comboio segue o seu destino. Maria dá uma gargalhada.

- Parvalhão

Na rua o povo grita:

SOMOS LIVRES

Conto de ficção policial
De Liberdade
13 de Outubro de 2012



Também publicado no Paralelo

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