7 de fevereiro de 2013

Que se lixe a troika, o povo é quem mais ordena

Acredito na liberdade, isto é, creio que todos somos capazes de tomar decisões independentes das nossas crenças e dos nossos desejos, de examinar racionalmente um problema com os outros e procurar a melhor de entre as soluções disponíveis. Creio, sob pena de contradição, que o mesmo se aplica aos militantes de partidos.

Também porque acredito na liberdade, a ideia de um partido necessário me parece contraditória, uma vez que ela implica a negação da possibilidade da auto-libertação e, por extensão, da liberdade.

O partido não é necessariamente uma entidade com sócios, sedes abertas e existência reconhecida notarialmente, ele pode estar implicado no comportamento de qualquer grupo mais ou menos formal e combate-se pelo “conhecimento que a mente tem da sua ligação ao todo.” (B.S.)

Se a liberdade política é a possibilidade de todo o cidadão participar na gestão da coisa pública, qualquer forma indirecta da representação me parece uma limitação da liberdade (digo limitação porque creio que a liberdade admite graus).

A organização autónoma das populações parece ser, por coerência, o melhor modelo para a realização da liberdade política e da justiça social, também porque nenhum indivíduo ou elite escapa ao apelo da paixão e os argumentos da complexidade e da necessidade do segredo são apenas argumentos a favor da dominação.

Ao contrário do que comummente se afirma, creio que só os fins podem justificar os meios e que, por conseguinte o fim está já implicado no meio. Creio, contudo, que os meios podem ter diferentes graus de adequação, garantindo diferentes possibilidades de sucesso; mas não posso atravessar um rio em cima de uma laje.

O que está hoje em causa não é a troika em sentido estrito, mas o contra-ataque ao golpe de estado de uma direita caceteira, comandado pelo capital financeiro e as multinacionais com a conivência dos partidos da internacional socialista e, como no caso Português, de alguns sindicatos (UGT).

A necessidade urgente de derrubar o governo actual, mera delegação da troika, e de inviabilizar a formação de um governo de direita, faz-se acima de tudo na rua, procurando a partir daí induzir práticas que permitam reverter a situação, como aconteceu já noutros países sujeitos a ataques similares.

É ao mesmo tempo necessário caminhar no sentido de tornar possível a realização da liberdade política, o que exige o lançamento da organização autónoma das populações (mais que falar dela) e, porque a linguagem é fundamental na construção da realidade social, abandonar frases da forma “reivindicamos tal e tal”, pelo que implicam de reconhecimento da ordem dominante, ou “a democracia está em perigo”, que arrastam consigo muitos equívocas relativamente ao que pensamos, acabando por nos confundirem a nós mesmos.

O “que se lixe a troika” parece-me ser neste momento, pela sua heterogeneidade e abertura, por ser maioritariamente animado por independentes, o lugar mais plausível para um debate franco e uma acção descomplexada em direcção à liberdade.

António A.

11 de janeiro de 2013

Os psicopatas das pensões

O FMI propõe cortes de mais 15% nas pensões porque diz que os filhos e os netos estão numa situação de desigualdade em relação aos avós. Aparentemente existe desigualdade nos rendimentos disponíveis mas isso deve-se sobretudo ao desemprego que afecta tanto filhos como netos resultante das políticas de austeridade que o próprio FMI propõe. O discurso de que duas coisas, para serem iguais, tem de se cortar a maior até pode parecer socialista mas o FMI só defende esta lógica para justificar cortes aos mais pobres porque em relação às desigualdades entre os ricalhaços que vivem do capital e os trabalhadores e pensionistas usam o discurso do mérito. O mérito é apenas uma falácia com a intenção de esconder o privilégio. O que o FMI não sabe ou não quer saber é que as pensões dos avós sustentam muitos filhos e muitos netos. Um corte adicional de 15% nas pensões não só tira a dignidade a quem trabalhou a vida toda mas destrói todo e qualquer mecanismo de solidariedade familiar. Carlos Moedas sorri e revela a face psicopática do neoliberalismo. O ódio aos pobres. A vontade de acabar com a pobreza pela via do genocídio.

6 de dezembro de 2012

5 de dezembro de 2012

Um olhar de perto da revolução síria

Um anarquista entre jihadistas

Por um companheiro sírio

O que poderia, em alguma medida, explicar minha situação quando eu estava no interior dos “territórios liberados” da Síria, é que esses são territórios controlados pelo exército livre, as forças armadas da oposição Síria. Mas isso ainda não seria inteiramente verdadeiro. É verdade que nem todos os militantes do exército livre são jihadistas devotos, embora a maioria deles pensem, ou digam, que o que eles estão praticando é “Jihad”. A verdade é que há muita gente comum, mesmo ladrões, etc. entre eles, como em qualquer conflito armado. 

Minha primeira e última impressão quanto à situação corrente na Síria é que não há mais uma revolução população acontecendo lá; O que está tomando lugar no país é uma revolução armada que pode degenerar simplesmente para um conflito civil. O povo sírio, que mostrou coragem e determinação sem precedentes, nos primeiros meses da revolução, para derrotar o regime de Assad, apesar de toda sua brutalidade, está, agora, de fato exausto. Dezenove longos meses de feroz repressão e, recentemente, fome, escassez e contínuos bombardeios do exército do regime, está enfraquecendo seu espírito. Cinicamente, o beneficiário de tudo isso não foi o regime, mas a oposição, especialmente os islâmicos. Dependentes de sua relações internacionais, especialmente com os ricos governos despóticos do golfo pérsico, a oposição agora pode alimentar e apoiar a população faminta nas áreas controladas por suas forças. Sem esse apoio uma grave situação humanitária poderia estar tomando lugar.
Mas esse apoio não é fornecido de graça, nem pelos governantes do golfo, nem pelos líderes oposicionistas. Eles são, como qualquer outra força autoritária, solicitando a submissão e a obediência das massas. Isso, de fato, poderia apenas significar apenas a morte real da revolução síria como um corajoso ato popular das massas sírias. Sim, eu ajudei alguns jihadistas a sobreviver e outros a voltar ao combate, mas minha intenção real foi ajudar as massas às quais pertenço, primeiramente como médico, e, depois, como anarquista. 

Para dizer a verdade, não acho que nosso problema seja com o islã propriamente. O islã pode ser também igualitário, ou mesmo anárquico. Na história do islã houve estudiosos que reclamaram por uma sociedade muçulmana livre e sem estado, até por um universo livre sem qualquer tipo de autoridade. O problema com o que está acontecendo agora na Síria não é só o difícil e sangrento processo de superação de uma ditadura cruel, mas pode mesmo ser ainda pior: a substituição disto por outra ditadura, que pode ser pior e mais sangrenta. No começo da revolução, um pequeno número de pessoas, principalmente islâmicos devotos, reclamaram a representação das massas revoltosas e apontaram a eles mesmos como os verdadeiros revolucionários, a verdadeira representatividade da revolução. Isto foi contradito pela tendência predominante das massas e intelectuais revolucionários. Opusemos essa reivindicação autoritária e até falsa, mas fomos, e ainda somos, muito poucos para fazer alguma diferença real.
Essas pessoas defenderam que o que estava acontecendo era uma guerra religiosa, não uma mera revolução de massas oprimidas contra seus opressores. Usaram muito agressivamente o fato de que o opressor era de outra seita do islã, diferente da seita da maioria do povo que ele está explorando, uma seita que foi frequentemente julgada pelos sacerdotes sunitas no passado por ser contra o ensino do verdadeiro islã, o que é até pior do que não ser muçulmano. Ficamos chocados pelo fato de que a maioria dos xiitas, a seita do atual ditador, que são mais pobres e mais marginalizados do que a maioria sunita, deram apoio ao regime; e que participaram na brutal supressão das massas revoltas. Daí vem a “evidência” da “atual guerra religiosa” acontecendo entre sunitas e xiitas. Para elas, essas pessoas podem realmente estar reivindicando um real sunismo; elas são muçulmanas e tão sectárias que ninguém pode desafiá-las. De fato, eles construíam sua autoridade moral e espiritual antes do material.
Então, vem o apoio material dos governantes do golfo. Agora o potencial para qualquer luta popular real está caindo rapidamente; Síria é governada agora pelas armas; e só aqueles que as tem podem dizer algo sobre seu presente e futuro. E essa é a verdade não apenas para o regime de Assad e sua oposição islâmica. Em todo Oriente Médio as grandes esperanças estão desaparecendo rapidamente – Na Tunísia, Egito e onde quer que seja. Os islâmicos parecem ganhar todos os benefícios da corajosa luta das massas. E podem facilmente iniciar o processo de estabelecimento de suas leis fanáticas, com pouca oposição das massas. Posso sentir exatamente como Emma Goldman sentiu em 1922 quando ela rompeu com os bolcheviques e finalmente se desiludiu com suas regras. De fato, ninguém em todo mundo árabe e muçulmano parece mais próximo dos bolcheviques atualmente do que os islâmicos. Por muito tempo foram brutalmente reprimidos por ditaduras locais, usados para aterrorizar as massas no ocidente; e por causa disso podem ter parecido como se fossem a mais decisiva parte da oposição a essas ditaduras. Ao mesmo tempo, eles têm a mesma eficiente máquina de propaganda que os bolcheviques já tiveram. São tão agressivos e autoritários, quanto os bolcheviques foram durante os decisivos dias da Revolução de Outubro.  Então, parece lógico que os povos árabes optassem por tentar colocá-los no poder, ou aceitar sua subida até ele. Mesmo ansiar, como os operários e camponeses russos fizeram uma vez, que eles possam realmente criar um tipo diferente e melhor de sociedade, também parece lógico. No caso de Emma Goldman, ela despertou muito cedo dessa ilusão; para as massas, isso leva mais tempo. Ainda, Emma pensava, corretamente, em minha opinião: as massas estava muito certas para se levantar e tentar mudar sua realidade miserável, o grande “erro”, se isso pode ser descrito como um erro, foi feito pelas forças autoritárias que buscavam raptar a revolução. Nós apoiamos a revolução, não seus falsos “líderes”.

Construindo a alternativa libertária: propaganda e organização anarquista

A outra questão que penso ser importante para nós, anarquistas e massas árabes, é como construir a alternativa libertária: isto é, como iniciar uma propaganda libertária ou anarquista efetiva e como construir organizações libertárias. Para dizer a verdade, nunca tentei convencer ninguém a ser anarquista antes. Optei apenas pelo libre diálogo entre “iguais” com todo mundo. Nunca reivindiquei que sei tudo ou que qualquer anarquista ou qualquer outro ser humano mereça ser o “guia” ou o “líder” de outros, que ninguém merece estar na mesma posição que o Papa, imãs muçulmanos ou o secretário geral de qualquer partido leninista ou stalinista. Sempre pensei que tentar afetar outros é outro meio de praticar autoridade. Mas agora, vejo isso com outra perspectiva: isso é para fazer o anarquismo “disponível” ou conhecido para todos aqueles que querem lutar contra qualquer autoridade opressora de cuja repressão eles estão sofrendo; sejam eles operários, desempregados, estudantes, feministas, minorias étnicas, religiosas ou juventude, etc. isso é sobre tentar construir um exemplo ou amostra de uma nova vida livre no seio de uma organização libertária livre: não apenas como uma manifestação viva de sua presença potencial , mas também como um meio para alcançar essa sociedade.
Temos que fazer o anarquismo bem conhecido para todos os escravos e vítimas de todos os atuais sistemas supressivos e autoridades. EFETIVA PROPAGANDA ANARQUISTA é, penso, o primeiro objetivo de tais organizações. Em uma palavra, somos testemunhas da falência das “seculares“ tendências autoritárias (incluindo os nacionalistas e nacionalistas árabes, stalinistas e outras variedades de leninismo), e muito cedo a falência das religiões autoritárias. A alternativa futura deve ser, logicamente, libertária. Claro, o anarquismo não pode ser implantado artificalmente – deve ser um produto “natural” das lutas das massas locais. Mas ainda é necessário cuidado para ser devidamente realçado. Será, supostamente, o papel de nossa propaganda. Não haverá “centro” em nossa organização, nem burocracia, mas isso será esperado também de sua contraparte autoritária, até mesmo mais eficiente. Ainda Stalin ou Bonaparte não estão no poder, as massas sírias têm a oportunidade de obter um melhor resultado do que o da Revolução Russa. É verdade que isso tem se tornado mais difícil a cada minuto, mas a própria revolução já é um milagre, e nessa terra o oprimido pode cria seus milagres vez por vez. Dessa vez também, nós, anarquistas sírios, estamos botando todas nossas fichas e todos nossos esforços com as massas. Não pode haver outro caminho, ou não mereceríamos ser chamados de libertários.

Tradução: Rafael Martins da Costa, de Porto Alegre
http://www.desdiscursos.blogspot.pt/2012/11/um-olhar-de-perto-da-revolucao-siria.html

9 de novembro de 2012

Morreu

Súbito d’ante os olhos se apartou.
Desfez-se a nuvem negra e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.”
(Camões)
Morreu, espalhem a notícia, não sei quem o matou, se foi a criança ou o velho, se foi o doutor ou o operário, sei que está morto.

- Está morto!
- Morto? Tem a certeza?
- Morto e enterrado.
- Como foi?
- Pois não sei! Se com sete facadas ou nove, se estrangulado na noite, se um tiro perdido mas certeiro… Mas espalhem, espalhem a notícia.

Desci a calçada a correr, espalhando a notícia aos sete ventos.

- Está morto – disse a professora, e soltando uma gargalhada acrescentou – posso finalmente dar a aula. Mas, tens a certeza que está morto?
- Sem qualquer dúvida, a notícia veio de Lisboa… Até já o enterraram!
- Ó senhor Doutor, já sabe quem morreu?
- Sim já ouvi dizer, e a ser verdade tenho muito que fazer – Posso finalmente tratar dos meus doentes.
- E eu vou estudar – diz o estudante – nem posso acreditar que acabaram aquelas noites infernais.
- Espalhem a notícia, espalhem a notícia…
- Já avisaram a Madame?
- Óhh nãooooooo! E agora quem me lava o chão? – Lamenta a madame.

E a notícia espalhou-se, bem certo que esta agradava a muita gente, mas – mas porque há sempre um mas – houvera quem não ficasse contente.

- Morreu? – O banqueiro não queria acreditar.
- Pois morreu, sou eu que lhe digo. Pode pegar nos seus trapinhos e zarpar daqui.
- Com quem pensas tu que falas? Ainda há autoridade! Pois bem, deixa-te estar aí que eu vou chamar a polícia.
- Esteja à sua vontade, já lhe disse que morreu. Morto e bem morto! Com 7 palmos de terra em cima.
- Está lá, é da polícia? Façam o favor de cá vir, tenho aqui um arrogante, a fazer-me frente… E venham com urgência!
- Como podemos ir? Ele morreu! – Responde do outro lado o polícia.
- Cambada de idiotas… Eu ordeno! Venham cá rapidamente!
- Ordene à vontade, mas eu se fosse a si zarpava… E agora se me permite vou ali informar o senhor Prior.

Fui até ao largo, entrei na igreja e passei pelo prior. Subi a escada da torre.

- Onde pensa que vai? – Pergunta o pior.
- Subir à torre, tocar o sino a rebate, para que o mundo inteiro saiba da notícia.
- Mas que foi que aconteceu?
- Foi ele que morreu.
- Paz à sua alma, que Deus o receba, mas diga-me lá quem morreu?
- O Medo morreu.
- Morreu? Mas como foi isso? É trágico! E agora quem vai para o inferno? – Desesperado o prior começa a gritar – Quem permitiu isto? Como foi possível? Que será de mim?

Os sinos tocavam agora a rebate. Toda a gente ficou a saber que o Medo tinha finalmente morrido.

Do cimo da torre pude ver, o banqueiro, a madame, o prior, o polícia e o militar que de rabinho entre as pernas abandonavam o país.


Liberdade
3 de Outubro de 2012

4 de novembro de 2012

Os movimentos sociais e as vigarices sociais



Intróito
1 - O Congresso do Alterne
1.1 - Introdução
1.2 - Abordagem sociológica
1.3 – A Declaração do Alterne
2 – O grupinho “Que se lixe a Troika”

********************************

Intróito

No seguimento de “A despolitização, o controlo social e as alternativas”[1] vamos tratar de dois exemplos recentes de controlo social sob a forma de falsas alternativas ou, de alternativas internas ao sistema capitalista e de democracia de mercado. São elas, o recente Congresso Democrático das Alternativas a que abreviadamente, chamaremos Congresso do Alterne, incluindo aí referências à IAC – Iniciativa para uma Auditoria Cidadã, cuja longevidade, sem trabalho que se veja, aponta para um caso de burla política – por nós há ano e meio denunciada; e, a uma escala menor, o grupo “Que se lixe a Troika”. Todos se apresentam, implicitamente, como instrumentos do capital e da plutocracia, do mandarinato cleptocrático, como putativos candidatos a um lugar no sistema, através do imundo trabalho de gerar falsas alternativas junto de pessoas, mormente jovens e, reconduzirem os protestos e a vontade de mudança para o seu redil de exploração e iniquidade, enquadrados pelos seus cajados de pastores ideológicos.

1 - O Congresso do Alterne
1.1 - Introdução

Como é evidente, não nos dignámos a pisar as alcatifas da Reitoria para assistir a um evento promocional, de propaganda eleitoral. Não tomamos anti-histamínicos porque suportamos bem os ácaros; mas, somos muito reativos ao bolor político ou à vigarice intelectual.

Pelos relatos que nos deram do auspicioso evento de dia 5 de outubro, infelizmente ensombrado pela pitoresca estória da bandeira pátria colocada às avessas e que desviou a atenção dos telejornais, a coisa acabou bem, numa beatífica unidade; e, para compensar os funestos acontecimentos da manhã com o Cavaco a içar o estandarte (a melhor figura para o efeito dado o seu cariz de decadente), os convivas do Congresso cantaram sisudos, compenetrados e unitários, o espantoso hino do “contra os canhões, marchar”. 

A propósito daquele hino e imaginando a compostura democrática dos 1700 convivas - na sua esmagadora maioria relegados à função de ouvintes, mudos e quedos - a entrar no auditório, lembrámo-nos de uma canção do Fernando Tordo, “A Tourada”, cuja letra a seguir reproduzimos:  


Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
a espera.

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas, chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.

Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.

Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.

Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.

Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...

Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.

E diz o inteligente
que acabaram as canções
.[2]



Como convém no âmbito dos próceres do trotsko-estalinismo, o conclave teria de evidenciar uma linha justa, a proposta pelos caciques que, sensíveis aos ventos democráticos, incluíram umas quantas alterações propostas pelas “bases”. Impensável mesmo, seria a não existência de um documento final, agregador, uma vez que na lógica unanimista e autoritária, não há lugar a um simples evento de cruzamento de ideias, à expressão da diversidade enriquecedora, à presença de debate entre alternativas distintas. O debate formal tem de se balizar pelas marcas previamente estabelecidas pelos “organizadores”, admitindo simples ajustamentos de pormenor. O modelo democrático seguido em março na Activar e na Primavera Global de maio, horroriza-os.

A censura[3] incidente sobre textos recebidos de inegável qualidade - e que conhecemos - muito acima da geral banalidade dos textos divulgados no site do Congresso, é reveladora do conceito de democracia vigente entre os promotores. O que fugisse aos estreitos parâmetros da verdade definida uns cem anos atrás nos cânones de Lenin ou Trotsky, ficou condenado ao banimento; entre alguns conhecidos escudeiros do Carvalho da Silva, perpassou certamente uma imagem de esquerdistas a caminho do Gulag. Enfim, assim se manifestou o lápis azul dos zelosos gauleiters dos interesses da burocracia político-sindical que ajuda a Troika e o governo a manter os portugueses mansos, obedientes e resignados. Para os promotores do tal Congresso, a democracia é apenas a permitida por esses interesses. São democratas ma non troppo. A Comissão Organizadora continuará em funções sem qualquer discussão sobre a sua composição, mandato ou votação legitimadora; afinal, também Stalin e Trotsky estavam no anfiteatro.

E ainda para que a convergência seja maior, são convidados para o grupo elementos do PS a quem se dá protagonismo, na procura de atrair outros membros daquele grémio, sem tacho ou, somente descontentes com Seguro, espécie de alter ego de Passos. O Congresso do Alterne surge, claramente, como uma tentativa do BE de apresentar uma fotocópia desbotada pelo tempo, da criação de um MDP/CDE, numa aplicação serôdia do “Rumo à Vitória” de Cunhal, como uma aliança de “portugueses honrados”, zangados com a postura neoliberal e conservadora dos seus referentes; afastando, vade retrum, anarquistas e esquerdistas avulsos de diversos matizes, renitentes em aceitar tutelas partidárias, também de acordo com a teoria e a prática cunhalista.


1.2 - Abordagem sociológica

Antes de nos debruçarmos sobre algumas das conclusões do Congresso do Alterne analisemos o perfil da base de apoio dos seus promotores, considerando como amostra a lista dos 3763 subscritores, a despeito da má qualidade dos dados disponíveis para efeito de apuramento estatístico. Essa despreocupação pela qualidade dos dados é reveladora de que aos seus promotores pouco importa proceder a uma avaliação das camadas sociais ou profissionais apoiantes mas, somente proceder a um exercício de propaganda, de fixação de crentes e não de enriquecimento democrático. Note-se que o número de subscritores foi mais do dobro dos participantes no evento; a internet favorece estas discrepâncias.

Escrutinámos os referidos subscritores do Congresso, em função das suas profissões ou situações laborais ou ocupacionais, tendo em atenção que os resultados que apresentamos não são somáveis, uma vez que muitas pessoas optaram por apresentar mais do que uma caraterização profissional ou social, sendo portanto considerados em duplicado. Observem-se em seguida, algumas conclusões:

·       O maior grupo dos subscritores - 543 (14.4%) - são paisanos reformados, independentemente da sua profissão, excluindo, portanto, o caso dos militares apoiantes que, serão também aposentados, dado que formalmente, quando nas fileiras, os militares têm de ser eunucos políticos. Os reformados aqui contados não são tomados em mais nenhuma categoria profissional ou de qualificação;

·       O segundo grupo individualizável é o dos professores, não qualificados como do ensino superior, adiante considerados. São cerca de 11.2% do total, havendo bastantes que são também sindicalistas, mandarins ou com outras ocupações; os professores do ensino superior são 6.7% do universo, havendo também muitos que contribuem para a contagem de grupos de qualificação profissional;

·       Os estudantes - sem se considerar doutourandos, bolseiros ou investigadores - são apenas 165. Esse escasso número atesta o grau de despolitização dos jovens que, nem o conservadorismo da esquerda lusa consegue atrair e, permite que se pense no desajustamento que há entre o interesse dos professores do ensino superior por este evento da esquerda institucional e o pouco entusiasmo que o Congresso, protagonizado por gente bem conhecida da dita esquerda, gera entre os estudantes. Há um problema de comunicação, de linguagem entre professores e alunos, entre gerações ou, o discurso conservador da esquerda institucional não se apresenta capaz de combater a despolitização e o desencanto dos jovens, beneficiando, naturalmente, o conservadorismo social “mainstream”;

·       Os bolseiros, doutourandos e investigadores, estão relativamente bem representados entre os subscritores do Congresso (148), num quantitativo muito próximo dos estudantes, em fase anterior da sua formação. A precariedade da sua situação económica, o caráter autoritário da tutela de muitos lentes, a maior maturidade inerente à idade e ao grau de conhecimentos, torna este conjunto interessado nas temáticas propostas. Resta saber, se se revêem nas conclusões apresentadas pouco democraticamente pelos caciques partidários, no recato dos gabinetes ou, se o seu interesse pelo Congresso não é a procura de um protagonismo conducente a um lugar de mandarim, assessor de mandarim ou correlativo. Faltou uma sondagem à saída do evento…

·       As pessoas da área da saúde são cerca de 6% do total, no qual os médicos representam pouco menos de metade, seguidos dos psicólogos, profissão muito marcada pelo desemprego, procurando assim, de modo ingénuo, na esquerda tradicional, a concretização dos seus anseios. Ou esfregam os olhos e organizam-se e lutam no seio da multidão ou esperam sentados pelas soluções saídas do pentapartido estagnado na AR;

·       Os desempregados, por seu turno, não parecem muito entusiasmados com o Congresso, detetando-se apenas 182, sendo de admitir que neste grupo haja diferenças claras entre a subscrição e a presença no conclave, uma vez que nem todos terão tido dinheiro para deslocações a Lisboa;

·        Os advogados (98) e os juristas (49) estão bem representados revelando a apetência de muitos para o mandarinato e o correspondente tráfico de influências, ambicionando, porventura, a bela vida de colegas deputados, de manhã na AR e à tarde nas empresas de advogados a elaborar leis encomendadas pelo governo;

·        Os economistas são 119, certamente, fiéis defensores do intervencionismo estatal, da nacionalização, do keynesianismo, provavelmente proponentes de um retorno a um “modelo social europeu”, como se o neoliberalismo, sendo naturalmente temporário, possa ser reencaminhado para as estruturas políticas, económicas e sociais do princípio dos anos setenta do século passado. Estão, neste grupo os propagandistas da reestruturação da dívida como Castro Caldas ou paladinos do disparate como José Reis[4], antigo secretário de estado de Guterres;

·       As gentes das artes e do espetáculo (166), também em contexto complicado de subsistência gerado pelas políticas governamentais, estiveram também muito presentes neste evento da esquerda institucional, à procura de apoios para a defesa dos seus direitos. O mesmo sucede com os trabalhadores da função pública (139) que, tomados por madraços inchados de mordomias, esperariam que os chefes do alterne lhes apresentassem uma alternativa à miséria, à inanição e à sanha genocida protagonizada pelo governo do indigente mental Passos;

·       Os numerosos militares reformados (76), revelam uma coexistência curiosa entre os repressores e os reprimidos de 25 de novembro de 1975. Não sabemos se tal harmonia resulta do espírito corporativo típico dos militares ou do beatífico espírito unitário incutido pelos chefes e gurus do Alterne;
 ·       Sindicalistas e outros mandarins somam 109 almas, predominando entre os últimos, deputados da esquerda do regime mas, também alguns da ala menos à direita do partido-estado, brilhantemente conduzida pelo Seguro, habilidoso equilibrista que contesta o programa do governo, aceitando o memorando e a incontinente interferência da Troika que … construiu o programa do governo. Confuso mas, real. Note-se que uns quantos mandarins, apresentaram-se com o chapéu das suas qualificações profissionais, deixando o cartão do partido em casa, para se mascararem de “bases”, num ensaio para o Halloween;

·       Conhecendo-se a impenitente defesa do obreirismo na constelação trotsko-estalinista patrocinadora do Congresso, é espantosa a baixíssima presença de operários ou profissões reveladoras da presença do proletariado industrial… se descontarmos uns quantos entre os esforçados sindicalistas. Aliás, quando alguém afirma como principal profissão “sindicalista” revela o seu caráter de burocrata, de funcionário, provavelmente isento do que é trabalhar sob o autoritarismo patronal, o risco de despedimento e perda de salário. Para utilizarmos a linguagem típica do PC – aliás, marginalmente presente no convénio – predomina entre os subscritores a pequena burguesia dos serviços e o conjunto dos “intelectuais”, designação que o partido ainda utiliza para referir os licenciados, reportando-se a um tempo, décadas atrás, em que a posse de um “canudo” era uma excepção num país de iletrados e, longe da precariedade e do desemprego que os assola, também, nos dias de hoje. Essa postura provinciana faz equiparar licenciado a intelectual… pelo que Relvas será um intelectual e Saramago um trabalhador braçal pois utilizava a caneta como instrumento de trabalho;

·       Nada mais contrastante com a ausência da “classe operária” que a forte representação de empresários (67) e gestores, administradores ou gerentes de empresas (80); imaginamos a alegria dos patrocinadores com a presença de patrões, provavelmente daqueles que preferem jantar um prato de sopa a proceder a despedimentos. Este elemento dos subscritores do Congresso explica o constante namoro ao PS e a tranquilidade de muitos patrões face a esta “extrema-esquerda”, na designação da direita lusa.

Como é habitual, o PC não mostra na sua página a notícia do Congresso; não sendo sua iniciativa, nem parte da sua estratégia, foi um não-acontecimento que os seus devotos não precisam de saber, por decisão do CC. Para mais, o convénio continha bastantes ex-pc ou elementos menos ortodoxos como o Carvalho da Silva, gente que  ainda não foi para o PS… mas que está na fila.
 
Em paralelo com este convénio e os costumeiros desfiles do Arménio, foi desenterrado um tal Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD)[5], nascido por obra e graça de S. Jerónimo Magno em 2009, então com direito a faixa em manifestação da CGTP e a ter uma… direção nacional! Claro que ninguém sabe quem são os membros da direção nacional, das direções regionais, nem onde foram eleitos. Depois de três notas no blog naquele ano, o tal MTD passou 2010 em hibernação e em 2011 teve uma breve ressurreição, para recolocar uma foto de …2009. Em setembro último o MTD acordou para capear a marcha contra o desemprego terminada no dia 13 de outubro e, provavelmente, irá ser utilizado pelo PC para concorrer com o MSE – Movimento dos Sem Emprego, de génese trotskista. O PC/CGTP não pode correr riscos de ver alguém ocupar uma área muito sensível à radicalização nestes tempos conturbados de desemprego a crescer em flecha; o controlo social e a segurança no emprego dos burocratas sindicais assim o exige.
 
1.3 – A Declaração do Alterne

O que se viu no Congresso do Alterne foi que a única alternativa realista existente – mudança de paradigma económico e de organização política – é omissa;  e que a alternativa expressa – o pacto social – está morta, perante a pressão do capital financeiro internacional e a construção de um estado de exceção em que tudo é sacrificado para a satisfação do programa da Troika, algo que ainda irá durar bem mais do que os próximos cinco anos, caso se não verifique um levantamento popular que liquide o regime político cleptocrático.

Vejamos a matéria de alguns pontos da “Declaração do Congresso Democrático das Alternativas” - Resgatar Portugal para um Futuro Decente[6]:

·       No ponto 1.2 são omitidos os responsáveis pela assinatura do Memorando – a ala PS do partido-estado, PSD/PS; apenas se refere que o governo (o actual) foi capturado ideologicamente! Ilibando o PS, tenta-se branquear junto do povo as responsabilidades daquele partido na situação atual, como que dando uma indicação de voto no PS, como versão mais meiga ou menos amarga que o PSD; fica assim branqueado o comportamento da mafia socratóide desde 2005;
 
·       Por outro lado, ignora-se que o próximo governo será, provavelmente, de bloco central. Procedendo dessa maneira, ignorando essa realidade, os alternantes oram aos deuses para que o PS vire à esquerda, aceite uma “unidade nacional”, coopte alguns dos ilustres conferencistas para o governo - e outros como assessores -  para lhe dar um cheiro de “esquerda” e sossegar pessoas que se pretenderão agarrar a algo que lhes possa servir de esperança. Esperar um PS de esquerda é aguardar que um texugo cheire a rosas e, desse modo, a esquerda institucional oculta uma evidência; a de que apenas serve para o controlo social, para o qual está melhor colocada que a direita, emanação direta do capital;
 
·       Finalmente, afirmar que o governo foi capturado ideologicamente é idiota pois a sua própria matriz é a do neoliberalismo mais radical. Ninguém é capturado pelo que gosta e aprova;

·       O caráter de “esquerda” deste Congresso pode ver-se, caricaturalmente, pela presença da palavra capitalismo ou capitalista em três dos seus textos temáticos construídos pela brilhante equipa organizadora do concílio. Há apenas uma menção “As democracias liberais edificadas como arquitetura política do capitalismo…”, que, embora seja uma afirmação trivial, deve ter escapado aos censores. Nas 18 páginas da Declaração do Congresso, não há qualquer referência ao sistema económico que, aparentemente não tem nome ou é considerado como o fim da História, como defendido por Fukuyama[7]. E, portanto, o capitalismo está isento de responsabilidades, é apenas um reles detalhe técnico;

·       No mesmo ponto 1.2, o memorando é considerado “infeliz” como se resultasse de um descuido, de algo menos pensado pela Troika e pelos seus subscritores; como se fosse um golo na própria baliza. Esta observação, exemplar, prende-se com o projeto da esquerda institucional que, desistindo de analisar as caraterísticas do capitalismo de hoje, se reduz a avaliações quantitativas e de competência técnica. Estupidamente, repete por aí a incapacidade técnica de Gaspar, dos seus homens e da própria Troika, que “não querem ver” os impactos negativos da aplicação do memorando sobre a grande maioria dos portugueses, que revelam “insensibilidade social”, etc.[8] Eles até devem estar cheios de boas intenções mas, coitados, não percebem o mal que provocam e Lagarde até acha que os portugueses estão fatigados com a austeridade… Deus guarde os pobres de espírito pois será deles o reino dos céus!

·       Quando a realidade política é observada do ângulo das competências técnicas, da moral dos agentes políticos ou económicos, estamos no âmbito da metafísica ou da mais grosseira aldrabice. Se não acreditamos que Gaspar seja idiota também não admitimos que no leque de crânios que produzem o pensamento político da esquerda institucional prepondere a imbecilidade. Trata-se, sem dúvida de um cálculo político que evita denunciar as caraterísticas do capitalismo de hoje, do domínio do capital financeiro, pactuando, de facto, com este último, sob a capa de divergências processuais ou de estilo. É uma forma encapotada de evolução na continuidade, do conservadorismo que permite as chefias partidárias e os seus deputados terem uma vida sem sobressaltos. E por isso, acentuam como solução da crise e do fim da austeridade, a importância da queda do governo, de eleições, reivindicação sempre presente desde 1976, com muito parcos resultados. O problema é o sistema, não é só o governo;

·       A Troika e Gaspar sabem muito bem que as medidas que vão sendo tomadas encaminham rendimento para o capital financeiro global, que permitem a recuperação dos bancos portugueses, que favorecem as empresas de regime, que promovem um rebaixamento dos salários, das condições laborais e dos direitos sociais. A ideia é a de uma brutal redistribuição regressiva de rendimentos que promovam um espaço de baixos salários e que torne Portugal … competitivo face à Ásia e ao cone meridional da América do Sul; o fomento da emigração e as políticas genocidas dirigidas a cerca de metade da população visam um recuo populacional, necessário para um país mais… competitivo. Tudo, aspetos que a esquerda do sistema oculta, para que o tempo vá passando e a multidão continue entretida com discursos parlamentares, telenovelas e futebol;

·       No ponto 1.3 , aponta-se que a alternativa deve “basear-se num compromisso comum das forças políticas e sociais que dão valor ao desenvolvimento e à inclusão social, afirmam a dignidade do trabalho, estimam o papel da esfera pública e defendem uma democracia robusta”. Um saco cheio de gongorismos com vestes keynesianas;

·       Em 2.1 fala-se na renegociação da dívida após denúncia e, aparentemente, os congressistas deixaram cair a auditoria, há um ano tomada peça central para apresentar à Troika, bem como as contas feitas pelos mosqueteiros da IAC, certamente com argumentos tão esmagadores que o Selassie ficaria mesmo sem saber o que seria. A inevitável reestruturação da dívida pressupõe um ambiente de renegociação para salvar a face do governo perante a população, fazendo-lhe crer à plebe que os mandarins servem para alguma coisa e, que lutaram como leões contra a malvada Troika. Como a “determinação firme de Portugal” não passará pela ruptura – em caso algum os alternantes terão uma postura unilateral de suspensão dos pagamentos do serviço de dívida - a Troika tem a tarefa facilitada, uma vez que em vez de firmeza, encontrará a frouxidão no lado do partido-estado, PSD/PS, com ou sem o CDS pela trela;

·       Em 2.2 diz-se que “A abertura de negociações com as instâncias internacionais sobre o Memorando é a principal e mais urgente tarefa de um governo democrático”. A reivindicação é foguetório, uma vez que a reestruturação é inevitável, é uma certeza, estando prevista desde há muito tempo a renegociação para troca de empréstimos de curto prazo por outros, de longo prazo e taxas de juro mais baixas. O insuspeito jornal inglês “The Economist”[9], espelho dos interesses do capital financeiro, afirmava recentemente que “o ‘timing e a dimensão de uma reestruturação da dívida são difíceis de prever, mas que tal poderá acontecer no final de 2013” quando o Gaspar previa o retorno ao “mercado”. Na política institucional apontar para um facto futuro certo é a preparação para, no momento da sua efetivação, os mandarins apontarem ao povo as suas competências. Em tempo de seca, não é preciso ser meteorologista para se afirmar que acabará por chover;

·       A renegociação será levada a cabo com a presença do PSD/CDS ou do PSD/PS, se houver reformulação governamental na primavera. Sucede que a Declaração do Congresso afirma ser a abertura de negociações a mais urgente tarefa de um governo democrático. Assim sendo, será um governo de direita a protagonizar essa negociação e, assim, esse governo será implicitamente democrático porque… cumpre as reivindicações do pessoal do Alterne, ficando assim, os partidos de direita com a cara lavada. Como é notório, nem o PC, nem o BE serão chamados a dar uma caução democrática a esse próximo governo.

·       Por outro lado e apesar da fragilidade do governo atual, o PS não está interessado em eleições, em vir a assumir a gestão da crise e da aplicação das receitas da Troika; Seguro foi programado para aguentar o partido na oposição e nunca para primeiro-ministro. Qualquer sinal de que o PS poderá estar interessado (ou obrigado) em tomar conta do pote partirá da substituição de Seguro, tal como sucedeu com a invenção de Sócrates em 2005. A posição do PS é ir falando grosso para eleitorado ver mas, afastar-se do “radicalismo” do coro do PC/BE que clamam por umas eleições que lhe não interessam. A queda do governo dependerá essencialmente de Portas e, mesmo assim, não seria estranho que Merkel impusesse um governo das duas alas do partido-estado, sem mascarada eleitoral, a partir do manuseamento de Cavaco; seria institucionalmente menos grosseiro do que a nomeação de Papademos e Monti, em 2011, respetivamente na Grécia e na Itália;

·       No ponto 2.3, em linha com o que diz o governo e toda a direita, a reestruturação da dívida não poderá colocar em causa o financiamento externo que tem vindo a ocorrer, no âmbito do Memorando, ficando assim claro que no contexto do leque ideológico contido no Congresso, não haverá qualquer ruptura com a Troika. Recorde-se que a saída do euro (e da UE) é uma hipótese defendida apenas pelo PC - não publicamente – e que tem toda a lógica no quadro da sua deriva nacionalista; porém, essa posição é meramente tática, para fixação do seu conservador eleitorado, para marcar uma diferenciação agregadora, face à concorrência. O disparate é tal que não se atrevem a colocá-lo na praça pública, como o fazem os irmãos do KKE e dos pândegos vizinhos do PCPE;

·       Para as gentes presentes no Congresso, em grande parte sócios ou simpatizantes do BE, refere-se que “Portugal deve preparar-se para uma resposta da Troika que passa pela suspensão do financiamento acordado até 2013” num cenário europeu desfavorável e em 2.4 admite-se que “a resposta ao corte do financiamento fosse a declaração de uma moratória ao serviço da dívida”. Esta posição, reativa e afastada de uma iniciativa própria é semelhante à apontada pelo Syriza na Grécia, antes das eleições de junho; porém, o Syriza estava inserido numa estratégia eleitoral, num contexto em que a coligação grega tinha, então, sérias possibilidades de chegar ao poder e, esse simples facto atribuía-lhe uma credibilidade para a captação de eleitorado social-democrata que a esquerda institucional portuguesa está longe de ter;

·       Em caso algum os chefes do Congresso admitem uma iniciativa de moratória, com suspensão do pagamento do serviço de dívida[10], com a mobilização dos portugueses para o efeito, eventualmente concertados com a Grécia, a Espanha e a Itália, particularmente; apenas se admite a moratória, em reação, no seguimento de uma atitude de exclusão da parte da Troika;

·       Como se renuncia à iniciativa libertadora do torniquete definido pelo capital financeiro global e se aponta exclusivamente para a renegociação do memorando aceita-se, concomitantemente, a continuidade de um texto definidor não só da política económica e financeira como de toda a arquitetura dos direitos sociais e laborais, a efetuar de acordo com os interesses do capital financeiro e dos desígnios do empresariato luso, mormente as empresas de regime e dos meios exportadores. O naipe das “sensibilidades” mandarínicas que elaboraram a Declaração não se apercebe da contradição entre a aceitação de uma renegociação do memorando portador de limitações à soberania e o seu discurso patriótico. Arrotam diatribes patrióticas para fomentar e captar simpatias nacionalistas enganando os potenciais eleitores do BE ou do PC, com promessas vagas e vãs de aumento do emprego, de “defesa do Estado social”, “redução da dependência externa”, “reivindicação do direito ao desenvolvimento”, etc; ao mesmo tempo que defendem e se dispõem a aceitar a suserania externa da Troika, mesmo que aligeirada, numa renegociação do memorando. Em suma, acenam todo o arsenal ideológico de concertação social dentro de cada estado nacional, no quadro do capitalismo, temperado pelo reformismo keynesiano - surgido no pós-guerra na Europa Ocidental e já em decadência quando o regime fascista caiu em Portugal – para captar eleitorado;
 
·       No ponto 2.6 da Declaração afirma-se que a denúncia do Memorando significa o declínio e, convém sublinhar que aquela deveria ser apenas um princípio para evitar a brutal deriva empobrecedora e de regressão democrática em que estamos. O que se passa é que a atual re-hierarquização das regiões europeias, passa pelo aumento das desigualdades internas dentro da UE, com perdas evidentes para as periferias a sul. Esse modelo anula qualquer lógica de solidariedade federal entre as diversas regiões, o que aliás nunca se evidenciou em toda a história da integração europeia, apesar de toda uma propaganda de décadas. Sabe-se que os fundos estruturais visaram sobretudo, facilitar o comércio intracomunitário e uma determinada divisão interna do trabalho[11]; e, numa fase mais recente, acentuou-se a utilização da dívida como instrumento de transferências de capital, da periferia para o centro da UE, num género de retorno dos fundos comunitários enviados para Sul durante duas décadas. Esse modelo, porém, tem adjacente um projeto concentracionário de poderes políticos e económicos, com a sua acrescida transferência para um conjunto de órgãos burocráticos diretamente emanados do capital financeiro, no desenvolvimento da apropriação dos estados por aquele, como vimos referindo, em textos anteriores. Em termos da estrutura produtiva, pretende-se a constituição na Europa do sul e a leste - e mesmo na bacia mediterrânica - de uma área de concorrência com a Ásia, dentro de alguns anos, não sendo certamente por acaso toda a concentração do dispositivo militar-estratégico da NATO no Mediterrâneo. Com as tecnologias atuais, com o primado da mercantilização, é evidente que se prepara um grande declínio populacional, a médio prazo, a partir das medidas de redução de rendimentos e direitos que se vão estabelecendo no sul da Europa;

·       A saída não é fácil. Uma saída nacionalista por expulsão do euro e/ou da UE, ou ainda através de um desmembramento da UE, está longe de promover o bem-estar dos povos e uma maior democracia; esta, hoje, já meramente caricatural. Somente uma saída internacionalista, de unidade solidária e articulada entre os povos e, mormente dos trabalhadores, com a destruição do poder financeiro, das multinacionais e do capital mafioso é uma saída de futuro. Essa construção envolve a instituição da autogestão nas empresas, reformuladas como unidades técnicas e não de poder capitalista; a gestão do comum com decisão democrática, na base, tendo como fito a satisfação das necessidades coletivas, sem Estado ou classe política. Só essa laboriosa construção conduz à saída do pesadelo atual ou ao seu periódico renovar.

·       Como dizem os caciques que escreveram a Declaração do Congresso, quem decide é o povo soberano mas, no seu entender, toda a arquitetura da organização política e da representação é insuperável uma vez que a Constituição é um elemento sempre perfeito, intocável, mesmo que as suas revisões tenham sempre conduzido a perdas de direitos. Na lógica da conservadora esquerda do sistema, o que existe é para manter, porque a evolução, o progresso, os assusta e faz temer que as coisas só poderão piorar; preferem manter o sistema que lhes dá subsídios estatais e garante postos burocráticos do que arriscar em alterações profundas no ordenamento político e económico. Por isso, não pode apontar os governos como bandos de vulgares malfeitores, práticos de gestão danosa ou corrupta, de comportamento anti-social e genocida, de obediência servil à finança global como aos ditames do Ricardo Salgado, do Borges ou do Saraiva. O sistema económico e os modelos de organização política e de representação não têm qualquer legitimidade, mesmo que beneficiem da moleza despolitizada da plebe lusa e da conivência aveludada da confraria da toga; 

·       Por estar bem instalada e dependente do Estado, a esquerda institucional não pode defender ou promover uma subversão do atual estado de coisas, com a reformulação radical do ordenamento constitucional. Assim, a sua responsabilidade em que 87% da população esteja desiludida com a democracia[12] é imensa, não os vai beneficiar particularmente e, seguramente, não favorecerá o necessário aprofundamento democrático, com o prejuízo evidente para a multidão em processo galopante de empobrecimento e perda de direitos;

·       Daí, como diz o José Mário Branco, “consolida, filho, consolida”. Consolidam os lugares e as mordomias na AR, os discursos redondos e empolados, numa linguagem repleta de floreados que ninguém usa, sobretudo quando se lembram de ser criativos; consolidam os postos nos sindicatos, com a ajuda de estatutos que bloqueiam a democracia e qualquer alternativa; consolidam as mesmas práticas de manifestações rituais em fevereiro, maio e novembro, com a luta que continua e o governo que vai para a rua, como todos, aliás; e aproveitam a consolidada relação com a polícia sempre que alguns insubmissos não conhecem o verbo consolidar. Importante, sempre, é que haja sucessões de governo para que o regime se consolide. Alguma coisa tem de mudar para que nada de substantivo se altere. E por isso, pensamos lançar uma petição para que Cavaco, fóssil bem consolidado, se não esqueça (ai o Alzheimer!) de atribuir medalha ao Carvalho da Silva pelos seus 25 anos a consolidar o controlo social, cujas canseiras ainda lhe deixaram fôlego para inventar pífias auditorias cidadãs e magnos concílios do alterne;

2 de novembro de 2012

Alentejo Cigano: a Feira de Castro


Neste Alentejo em que escolhi viver sinto que tamanha sorte de coabitar nos seus vastos horizontes choca com um Alentejo fechado, pela ausência da multidão de gentes e culturas diferentes e onde a intolerância ao “outro” tão pouco carece que aqui voltássemos a ter a diversidade das mourarias históricas: manifesta-se no Alentejo Cigano. Séculos de distância encerram os mesmos seres humanos que aqui sempre viveram nas “famílias da terra” e nos “ciganos”.

Neste fim-de-semana o Baixo Alentejo celebra o seu grande encontro na Feira de Castro. E não há feira sem ciganos, pois para esta ser a grande feira do Sul, ela é a feira do Alentejo cigano. Nestes dias as ruas de Castro Verde abrem-se na multidão de gentes de todos os tipos e feitios, e entre todos eles o cigano sente-se em casa. Nestes dias o Alentejo é esse horizonte aberto que a natureza dita e o homem teima em contrariar.

A casa porém anda às avessas. Mais ainda numa altura em que na crise o medo reina, nos controla e quebra os movimentos, proporcionando deixar cair a inteligência e a razão, para redirecionar a raiva contra o cigano lá de casa. Por isso a profunda discriminação dos ciganos no Alentejo tornou-se no exemplo recorrente quando se fala de racismo em Portugal. Vejam-se os sapos à vista em lojas, cafés ou serviços públicos, como outrora se contavam as estrelas de David nas vestes do holocausto. O paralelo é exagero, mas provocatório o suficiente para questionar e contrariar esse virar de costas que pauta a relação com o cigano. Um barril de pólvora traçável ao longo da história, que não escusa igualmente os ciganos, quando na condição de indigência e autoexclusão reiteram a perversão da igualdade social. A questão resume-se, como qualquer forma de racismo se reduz, na perceção do “outro” e das suas diferenças por parte dos grupos dominantes, pelo que o problema nasce na forma como nos relacionarmos, fazendo dos binómios “integração/exclusão social” e “deveres e direitos” os palavrões chave.

Acontece que o modo como nos relacionamos, impôs às minorias o que o sociólogo José Gabriel P. Bastos chamou de “aculturação antagonista”. Isto é “o desprezo pelo outro, que impede a sua assimilação, mas concretiza-se em estratégias que promovem a marginalização social, cultural e moral dos grupos desprezados, bem como o aumento da diferenciação social e a emergência de conflitos interétnicos que podem ir em crescendo e se tornar insanáveis, se os dominantes não mudarem de estratégia”. E a estratégia de integração não admite outra coisa que não seja civilizar e normalizar o cigano a comportamentos, hábitos e expectativas padronizadas na cartilha de deveres e direitos, nascida de uma história cultural e política, à qual os ciganos foram afastados, e sem nunca ter havido lugar a que esta se cruzasse com a sua própria e diversa cartilha de deveres e direitos.

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22 de outubro de 2012

A despolitização, o controlo social e as alternativas


1 - A despolitização e o controlo social
2 - Elementos básicos para a construção de alternativa

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1 - A despolitização e o controlo social

Os tempos estão difíceis.

Estão difíceis para a multidão, pelas questões que sabemos – desemprego, cortes nos rendimentos e nos direitos, falsa democracia, ausência de futuro… Pretendemos capear, em seguida, essas dificuldades, por uma razão que se situa a montante, uma razão que, verdadeiramente, introduz dificuldades na compreensão do momento que se vive e, no desenvolvimento de uma contestação organizada e genuína, de refundação democrática da solidariedade e da equidade. A despolitização.
A despolitização das últimas décadas, programada pelo poder, está contemplada na Constituição, ao remeter para os partidos – com legalidade e subsistência financeira assegurada pelo Estado – todo o protagonismo na ação política. E é errado acusar exclusivamente a classe política saída do PREC, por isso. À medida que o tempo foi passando, o povo foi engolindo as várias colheres de xarope de histamínicos para se manter sonolento, sem os efeitos da alergia que convenientemente deveria ter sentido, desde que o regime fascista caiu, face aos gangs mafiosos que têm constituído o grosso da chamada classe política.

Numa primeira fase, o povo foi engolindo a necessidade da “consolidação democrática” excelentemente retratada por José Mário Branco no seu “FMI” (consolida, filho, consolida!) quando, de facto, o que se consolidava era o poder do capital e a corrupção, sua inerência, em termos monetários e de valores;

Depois, seguiram-se as colheres da “maioria de esquerda” em que o PC mascarava o seu confortável conformismo com a eterna espera de que o PS desenterrasse o seu parco esquerdismo do passado; e assim, o povo esperava, adiava as mudanças, talvez para as próximas eleições, cada vez menos participadas;

Entretanto, advieram duas doses de “FMI”, mistura de purga e diurético que provocaram forte desarranjo na vida dos trabalhadores, em 1977/79 e 1983/85; mas, os portugueses são um povo de fé e continuaram a encontrar a alegria de viver no consultório do médico de família, o PS/PSD;

O xarope seguinte veio do exterior e tinha na embalagem o rótulo “CEE”. De acordo com a bula inclusa, curava a tosse mais impertinente, a bulimia, a falta de estradas, de dinheiro, de amigos, de prestígio… E não teria contra-indicações para grávidas, cardíacos, epiléticos ou diabéticos;

A felicidade era tanta quanto a dos jovens caloiros fardados de negro depois de beberem 20 ginginhas no Rossio. Foram sorvidas doses industriais de fundos comunitários e crédito, à medida que se passeava nas novas autoestradas vendo a indústria definhar e a pujança de uma bem visível nova indústria, a do imobiliário, ouvindo o mavioso som das betoneiras;

Entretanto, veio a receita do euro, sem redução do fluxo de dívida nem da saída de capitais para o exterior. Está tudo bem, assegurava-se no consultório do PS/PSD; as dores nas costas é do tempo, as digestões curam-se com dieta, a prisão de vente com um laxantezito, as impinges com uma pomadita, a queda do cabelo com um elixir, as mamas descaídas com uma cirurgia plástica, a disfunção eréctil com uns comprimidos azuis… mesmo para os benfiquistas mais ferrenhos;

A alegria feneceu, não com a gripe aviária ou a gripe A, mas com quatro frascos de PEC e uma consulta ao especialista Troika, depois de uns açoites dados pela mamã Merkel, a Sócrates e Passos. Tudo acabará em bem, para si e sua excelentíssima família, aconselhou o médico de família, PS/PSD, na presença do estagiário Portas, após um esforço coletivo e algumas, poucas mas, notórias excepções.

O consumismo, adocicado com doses de xarope, ou as doses de xarope acompanhadas de consumo real ou projetado afetaram a capacidade de pensar e causaram efeitos colaterais na visão, contribuindo, em conjunto, para uma feliz despolitização, conveniente para a impune montagem de um estado de cleptocracia avançado.

Assim e apesar do seu arrastar de modo larvar, a crise, ao explodir em 2008 com ondas de choque crescentes com a passagem do tempo-espaço (ao contrário das bombas), encontrou uma população desprevenida e desprovida do hábito e da capacidade para uma abordagem mais profunda das causas, dos efeitos e das soluções.

Em 2011 foi ensaiado um xarope placebo chamado eleições, que substituiu a diarreia pela disenteria; e entretanto, os laboratórios da margem esquerda do parque industrial do controlo social mostram-se muito ativos na promoção do mesmo produto, na esperança de melhorarem as suas comissões de venda e assim garantirem ou, mesmo criarem, novos postos de trabalho, com rebuçados do dr. Keynes.

Na realidade, a plebe hesita ou mostra-se mesmo consciente de que o médico de família PS/PSD está velho, gordo, reumático e gangrenado, só resistindo porque ligado à máquina da repressão e ao apoio comunitário; no entanto, há quem dê ouvidos à gritaria dos delegados de propaganda dos laboratórios da margem esquerda, reles vendedores de banha da cobra, ainda que com qualidade atestada pela ASAE.

A ilusão resultante da despolitização provocará o comodismo da toma do fármaco eleições; ou, será a preguiça mental que constrói a ilusão de que tudo passará, através do funcionamento do mercado de bens e de serviços, incluindo nestes, os eleitorais?

Pouco importa se aquilo a que se assiste é a um arrastar dolente – apesar das marchas e procissões, dos gritos, das faixas inflamadas e dos sentidos epítetos dirigidos à mãe de Passos - sem ser sentida ou assumida a necessidade da morosa e difícil construção de alternativa, para além e contra o sistema de ditadura do mercado e das suas instituições. Nesse entretanto e para o efeito, afadigam-se no seio do movimento social, os novos e velhos sofistas, candidatos a mandarim, no sentido de reconstruir o controlo social e tornarem-se os seus gestores.

Os quadros partidários têm, em geral, baixa cultura política, mesmo quando possuidores de elevadas habilitações académicas; para confraternizar com uma plebe ignara e mansa, vai chegando. Em contrapartida, sentem-se confortados por se inserirem numa cadeia hierárquica, detentora da “linha justa” e sobra-lhes um forte espírito de pertença à seita, semelhante ao das claques do futebol, mais baseado na emoção, no espírito de grupo, do que na endogeneização de uma capacidade argumentativa.

Perante os neófitos ou potenciais recrutáveis, aquelas são as caraterísticas que mais usam, acenando com o conforto de se estar num grupo alargado, quando o contexto social, sabemos todos, é gerador de isolamento e individualização. A tática para o recrutamento não é diversa da utilizada pela IURD ou pelas Testemunhas de Jeová junto de suburbanos desenraizados.

Nesse contexto, reagem, sempre ríspidos, às críticas vindas de meios anarquistas ou alternativos ou, encolhem as orelhas, não respondendo às mesmas, para evitar discussões onde se possa evidenciar mais a pobreza política do partido junto das “massas”; e logo se sentem tocados quando alguém critica o seu clube, tomando a crítica como algo próximo do ataque ou ofensa pessoal. Parece que, como pessoas, se anulam em função da sua claque, como as formigas face ao formigueiro. A não reivindicação de carta de alforria pouco acontece porque no fim da sua estrada está um cargo de mandarim e mordomias estatais.

18 de outubro de 2012

Rebatendo oito objecções comuns ao anarquismo


Excerto de Anthropology and Anarchism: Their Elective Affinity, Brian Morris, 2005

De todas as filosofias políticas, o anarquismo é talvez a que teve uma pior imprensa. Foi ignorado, ridicularizado, abusado, mal-entendido e representado erroneamente por escritores de todas as partes do espectro político: marxistas, liberais, democratas e conservadores (Theodore Roosevelt, o presidente norte-americano, descreveu o anarquismo como "crime contra a raça humana"), e foi julgado como destrutivo, violento e niilista. Várias críticas foram lançadas contra o anarquismo. Tratarei brevemente cada uma delas. São oito objecções no total.

1. Diz-se que os anarquistas são demasiado inocentes, demasiado naive e têm uma ideia idílica da natureza humana. Diz-se que, como Rousseau, têm uma visão romântica da natureza humana como essencialmente boa e pacífica. Mas, certamente, os humanos não são assim na realidade; são cruéis, agressivos, egoístas, pelo que a anarquia é um sonho inalcansável. É uma visão irreal de uma passada idade dourada que nunca existiu. Deste modo, algum tipo de autoridade coerciva é sempre necessária. A verdade é que os anarquistas não seguem Rousseau. De facto, Bakunine foi muito crítico com os filósofos do século XVIII. Muitos anarquistas tendem a pensar que o ser humano tem tanto tendências boas como más. Se os humanos fossem só bondade e lucidez, importaria-lhes ser governados? O facto de que os anarquistas se opõem a todas as formas de autoridade coerciva  deve-se precisamente a terem uma visão realista, em vez de romântica, da natureza humana. No fundo, os anarquistas opõem-se a todo o poder no sentido da palavra francesa puissance ("poder sobre") - em vez de pouvoir ("poder para fazer algo") -, e crêem, como Lord Acton, que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Como Paul Goodman (1968) escreveu, a questão não é se as pessoas são "suficientemente boas" para um tipo particular de sociedade, mas sim de desenvolver o tipo de instituições sociais mais adequadas para expandir as nossas potencialidades de inteligência, honra, sociabilidade e liberdade.

2. A anarquia, crê-se, é sinónimo de caos e desordem. Este é, de facto, como as pessoas usam o termo. No entanto, a anarquia é entendida pelos anarquistas num sentido completamente oposto. Significa uma sociedade baseada na ordem. Anarquia não significa caos ou ausência de organização, mas uma sociedade baseada na autonomia do indivíduo, na cooperação e sem governantes e autoridade coerciva. Como Proudhon (1851) assinalou, a liberdade é a mãe da ordem. Não obstante, os anarquistas não denunciam o caos, porque vêm no caos e na desordem um potencial inerente; como disse Bakunin (1842) destruir é um acto criativo.

3. Existe outra equação entre anarquismo e violência. O anarquismo, segundo se diz, advoga as bombas terroristas e a violência. Há inclusive um livro nas livrarias intitulado The Anarchist Cookbook (O livro de cozinha anarquista) que descreve como fabricar bombas e dinamite. Mas, como Alexander Berkman escreveu, o recurso à violência contra a opressão ou para atingir determinados objectivos sempre existiu ao longo da história da humanidade. Actos de violência foram cometidos por seguidores de todos os credos políticos e religiosos: nacionalistas, liberais, socialistas, feministas, republicanos, monárquicos, budistas, muçulmanos, cristãos, democratas, conservadores, fascistas. E todos os governos estão baseados na violência organizada. Os anarquistas que recorreram à violência não são piores que os demais. Na verdade, a maior parte dos anarquistas se posicionaram contra a violência e o terrorismo, e sempre houve uma forte ligação entre o anarquismo e o pacifismo. Os anarquistas deram, inclusive, um passo mais ao denunciar a violência que a maioria não reconhece e que é sempre a pior possível: a violência legal. Não é necessário mencionar que alguns anarquistas mais conhecidos, como Tolstoi, De Cleyre, Gandhi e Edward Carpenter, eram pacifistas.

4. Os anarquistas foram acusados, especialmente pelos marxistas, de serem tolos teóricos, de serem anti-intelectuais e de criarem um culto absurdo à acção. Como estudioso do movimento anarquista indicarei que muitos anarquistas e pessoas com simpatias com o anarquismo estiveram entre os intelectuais mais destacados da sua geração, pessoas realmente criativas. Podemos mencionar Godwin, Humboldt, Reclus, Tolstoi, Bertrand Russell, Gandhi, Chomsky e Bookchin, entre outros. Além disso, os anarquistas produziram muitos textos básicos sublinhando a sua própria filosofia e as suas próprias doutrinas sociais. Estas estão geralmente livres do jargão e das pretensões académicas com que muitos liberais, marxistas e pós-modernistas se disfarçam.

5. Outra crítica é o oposto a isto: o anarquismo é por ser apolítico e ser uma doutrina inactiva. Os anarquistas, de acordo com o ex-dirigente do Partido Verde (Green Party of England and Wales), não fazem mais do que olhar para o seu umbigo. Porque não participam na vida política partidária, Porritt afirma, inclusive, que os anarquistas não vivem no "mundo real". Todos os temas essenciais do manifesto do Partido Verde - o apelo a uma sociedade descentralizada, igualitária, ecológica, cooperativa e com instituições flexíveis - são, desde logo, simplesmente uma apropriação sem reconhecimento do que anarquistas como Kropotkin haviam proposto há muito tempo. Mas para Porritt, esta visão restringe-se a uma política partidária. Como figura mediática, Porritt interpreta de maneira completamente errónea o que é o anarquismo - e, portanto, uma sociedade descentralizada. Este não promulga o retiro para a oração, a auto-indulgência ou a meditação, independentemente de que olhe para o seu umbigo ou cante mantras. É simplesmente hostil à política parlamentar ou de partidos. A única democracia que crê válida é a democracia participativa e considera pôr um X num papel a cada quatro ou cinco anos é simplesmente uma farsa, pois apenas serve para dar uma justificação ideológica aos ostentadores do poder numa sociedade que é fundamentalmente hierárquica e anti-democrática. Há anarquistas de muitos tipos. Sustentaram, portanto, várias formas de desafiar e transformar o sistema actual de violência e desigualdade - através de comunas, resistência passiva, sindicalismo, democracia municipal, insurreição, acção directa e educação. Uma das razões pela qual os anarquistas realçaram a publicação de propaganda e a educação é que sempre consideraram a organização dos partidos como violenta.  Os anarquistas foram sempre muito críticos da noção de partido vanguardista, por lhes parecer que leva obrigatoriamente a certo tipo de despotismo. E em relação às Revoluções Francesa e Russa, a história mostrou que as suas premonições eram correctas.

6. Uma crítica consistente ao anarquismo elaborada pelos marxistas é que é utópico e romântico: uma ideologia camponesa ou pequeno-burguesa, uma manifestação de sonhos milenaristas. Os estudos históricos de John Hart sobre o anarquismo e a classe operária mexicana (1978) e de Jerome Mintz sobre Los anarquistas de Casas Viejas em Espanha (1982) refutaram, de forma mais do que suficiente, alguns destes falsos preconceitos sobre o anarquismo. O movimento anarquista não ficou confinado ao campesinato: floresceu entre os trabalhadores urbanos onde o anarco-sindicalismo se desenvolveu. Tão pouco é utópico ou milenarista. Os anarquistas criaram colectividades reais e sempre foram muito críticos com a religião. Como as diversas obras de Reclus ou Berkman atestam, nenhum dos primeiros anarquistas esperava uma mudança imediata, ou cataclismo, através da "propaganda pelo acto", ou da "greve geral". Eles sabiam que seria um caminho longo.

7. Outra crítica ao anarquismo é que tem uma concepção muito estreita da política, que vê o Estado como a fonte de todo o mal, ignorando outros aspectos da vida económica e social. Esta é uma representação falsa do anarquismo que deriva parcialmente da forma como o anarquismo foi definido, e da tentativa dos historiadores marxistas de excluir o anarquismo do movimento socialista mais amplo. Mas quando examinamos os escritos de anarquistas clássicos como Kropotkin, Goldman, Malatesta e Tolstoi, assim como o carácter dos movimentos anarquistas em lugares como a Itália, México, Espanha e França, torna-se evidente que nunca existiu esta visão tão limitada. Sempre desafiou todas as formas de autoridade e exploração e foi tão crítico com o capitalismo e a religião como o foi com o Estado. Muitos anarquistas eram feministas, muitos lutaram contra o racismo e lutaram pela liberdade das crianças. A crítica ecológica e cultural ao capitalismo foi sempre uma dimensão importante dos escritos anarquistas. Por isso, as obras de Tolstoi, Reclus e Kropotkin são ainda actuais.

8. Uma última crítica ao anarquismo é que é pouco realista: a anarquia nunca funcionará. O socialista de mercado David Miller representa este ponto de vista no seu conhecido livro Anarchism (1984). A sua atitude face ao anarquismo é a de "cara ou coroa". Admite que existiram comunidades baseadas nos princípios anarco-comunistas, que inclusive obtiveram algum êxito inesperado. Contudo, afirma que devido à falta de apoio popular e à intervenção estatal e à repressão, sempre fracassaram. Por outro lado, argumenta que de nenhum modo as sociedades poderiam existir sem algum tipo de governo centralizado. Miller parece ignorar a longa existência do que Stanley Diamond (1974) chamou de "comunidades de parentesco" dentro, e frequentemente em oposição, dos sistemas estatais, e que redes comerciais existiram ao longo da história, incluindo entre os caçadores-recolectores, sem nenhum tipo de controle estatal. O Estado, de qualquer forma, é um fenómeno recente e a sua forma actual de Estado-nação tem tão só quinhentos anos de existência. As comunidades humanas existiram por muito tempo sem autoridade central ou coerciva. Se é possível a existência de uma sociedade tecnologicamente complexa sem autoridade não é uma questão fácil de responder. Tão pouco é uma questão que deva evitar-se. Muitos anarquistas crêem que a dita sociedade é possível, ainda que a tecnologia deva existir numa "escala humana". Os sistemas complexos existem na natureza sem que haja neles nenhum mecanismo de controlo. De facto, muitos teóricos globais contemporâneos começam a vislumbrar o panorama social libertário que pode emergir na era da tecnologia informática. Não é necessário dizer que, se Miller tivesse aplicado o mesmo critério pelo qual julga o anarquismo - justiça distributiva e bem-estar social - ao capitalismo e ao "comunismo" de Estado, então possivelmente haveria declarado esses sistemas pouco práticos e pouco realistas. Mas pelo menos Miller quer resgatar o anarquismo dos desperdícios da história, e ajudar-nos a conter os abusos de poder e a manter vivas as possibilidades de relação sociais livres.