Rui Pereira sobre a «coesão social»
A «coesão social» como eufemismo
A OBSIDIANTE presença da «coesão social» no discurso político hegemónico dos nossos dias declina-se em duas grandes modalidades. A dos votos piedosos e a das preocupações carregadas. Votos piedosos porque não havendo discurso de poder que se lhe não refira, por vezes tornando-a quase central, não há políticas que a não ignorem. Preocupações carregadas porque não há discurso de poder que a aborde sem mencionar «os riscos de conflitualidade» que a sua falta acarreta. E neste campo, sim, as políticas superam, em muito, as palavras como o uso dado às forças policiais, em particular à PSP, tem evidenciado nos últimos meses.
Dir-se-á que isto é razoavelmente óbvio, um efeito natural de conjuntura. É verdade. Mas existe na expressão, entre vários outros, um não-dito especialmente importante. É que a falta de «coesão social» constitui no discurso um eufemismo, como que uma prótese expressiva. No seu lugar, o que deveria estar a mencionar-se não era a ausência de coesão, mas a falta de justiça- E a injustiça de tal falta.
Experimentemos, assim, substituir a prótese pelo órgão, isto é, a palavra «coesão» pela palavra «justiça» e observaremos com facilidade a vastidão do mundo de iniquidade que se esconde ao empregar-se a primeira no lugar da segunda.
Substituamos, em seguida no mesmo discurso sobre a «falta de coesão», as temidas consequências de «conflitualidade social» por ela geradas, pelas temíveis causas que a geram -a lógica insaciável de apropriação privada de toda e qualquer riqueza socialmente produzida.
Veremos, com facilidade que a «falta de coesão social», ao contrário daquilo que se sugere no discurso hegemónico, deixa de afigurar-se enquanto produto da ira caprichosa da natureza ou dos deuses («da crise», para resumir) e bem mais como o resultado objectivo das opções políticas tomadas por homens, precisamente os mesmos, aliás, que a respeito dela exprimem os votos piedosos e as preocupações carregadas.
É este o interesse do eufemismo que subsitui «justiça social» por «coesão social» no discurso do poder. É este o seu peso oculto por trás da ligeireza com que as palavras parecem fazer-se e desfazer-se, umas após as outras, silenciando os tempos que vivemos tanto quanto dizendo-os.
Um tempo em que a injustiça não parece capaz de suscitar, aos poderes regentes, mais do que um voto piedoso e os receios seus correspondentes.
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