18 de outubro de 2012

Rebatendo oito objecções comuns ao anarquismo


Excerto de Anthropology and Anarchism: Their Elective Affinity, Brian Morris, 2005

De todas as filosofias políticas, o anarquismo é talvez a que teve uma pior imprensa. Foi ignorado, ridicularizado, abusado, mal-entendido e representado erroneamente por escritores de todas as partes do espectro político: marxistas, liberais, democratas e conservadores (Theodore Roosevelt, o presidente norte-americano, descreveu o anarquismo como "crime contra a raça humana"), e foi julgado como destrutivo, violento e niilista. Várias críticas foram lançadas contra o anarquismo. Tratarei brevemente cada uma delas. São oito objecções no total.

1. Diz-se que os anarquistas são demasiado inocentes, demasiado naive e têm uma ideia idílica da natureza humana. Diz-se que, como Rousseau, têm uma visão romântica da natureza humana como essencialmente boa e pacífica. Mas, certamente, os humanos não são assim na realidade; são cruéis, agressivos, egoístas, pelo que a anarquia é um sonho inalcansável. É uma visão irreal de uma passada idade dourada que nunca existiu. Deste modo, algum tipo de autoridade coerciva é sempre necessária. A verdade é que os anarquistas não seguem Rousseau. De facto, Bakunine foi muito crítico com os filósofos do século XVIII. Muitos anarquistas tendem a pensar que o ser humano tem tanto tendências boas como más. Se os humanos fossem só bondade e lucidez, importaria-lhes ser governados? O facto de que os anarquistas se opõem a todas as formas de autoridade coerciva  deve-se precisamente a terem uma visão realista, em vez de romântica, da natureza humana. No fundo, os anarquistas opõem-se a todo o poder no sentido da palavra francesa puissance ("poder sobre") - em vez de pouvoir ("poder para fazer algo") -, e crêem, como Lord Acton, que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Como Paul Goodman (1968) escreveu, a questão não é se as pessoas são "suficientemente boas" para um tipo particular de sociedade, mas sim de desenvolver o tipo de instituições sociais mais adequadas para expandir as nossas potencialidades de inteligência, honra, sociabilidade e liberdade.

2. A anarquia, crê-se, é sinónimo de caos e desordem. Este é, de facto, como as pessoas usam o termo. No entanto, a anarquia é entendida pelos anarquistas num sentido completamente oposto. Significa uma sociedade baseada na ordem. Anarquia não significa caos ou ausência de organização, mas uma sociedade baseada na autonomia do indivíduo, na cooperação e sem governantes e autoridade coerciva. Como Proudhon (1851) assinalou, a liberdade é a mãe da ordem. Não obstante, os anarquistas não denunciam o caos, porque vêm no caos e na desordem um potencial inerente; como disse Bakunin (1842) destruir é um acto criativo.

3. Existe outra equação entre anarquismo e violência. O anarquismo, segundo se diz, advoga as bombas terroristas e a violência. Há inclusive um livro nas livrarias intitulado The Anarchist Cookbook (O livro de cozinha anarquista) que descreve como fabricar bombas e dinamite. Mas, como Alexander Berkman escreveu, o recurso à violência contra a opressão ou para atingir determinados objectivos sempre existiu ao longo da história da humanidade. Actos de violência foram cometidos por seguidores de todos os credos políticos e religiosos: nacionalistas, liberais, socialistas, feministas, republicanos, monárquicos, budistas, muçulmanos, cristãos, democratas, conservadores, fascistas. E todos os governos estão baseados na violência organizada. Os anarquistas que recorreram à violência não são piores que os demais. Na verdade, a maior parte dos anarquistas se posicionaram contra a violência e o terrorismo, e sempre houve uma forte ligação entre o anarquismo e o pacifismo. Os anarquistas deram, inclusive, um passo mais ao denunciar a violência que a maioria não reconhece e que é sempre a pior possível: a violência legal. Não é necessário mencionar que alguns anarquistas mais conhecidos, como Tolstoi, De Cleyre, Gandhi e Edward Carpenter, eram pacifistas.

4. Os anarquistas foram acusados, especialmente pelos marxistas, de serem tolos teóricos, de serem anti-intelectuais e de criarem um culto absurdo à acção. Como estudioso do movimento anarquista indicarei que muitos anarquistas e pessoas com simpatias com o anarquismo estiveram entre os intelectuais mais destacados da sua geração, pessoas realmente criativas. Podemos mencionar Godwin, Humboldt, Reclus, Tolstoi, Bertrand Russell, Gandhi, Chomsky e Bookchin, entre outros. Além disso, os anarquistas produziram muitos textos básicos sublinhando a sua própria filosofia e as suas próprias doutrinas sociais. Estas estão geralmente livres do jargão e das pretensões académicas com que muitos liberais, marxistas e pós-modernistas se disfarçam.

5. Outra crítica é o oposto a isto: o anarquismo é por ser apolítico e ser uma doutrina inactiva. Os anarquistas, de acordo com o ex-dirigente do Partido Verde (Green Party of England and Wales), não fazem mais do que olhar para o seu umbigo. Porque não participam na vida política partidária, Porritt afirma, inclusive, que os anarquistas não vivem no "mundo real". Todos os temas essenciais do manifesto do Partido Verde - o apelo a uma sociedade descentralizada, igualitária, ecológica, cooperativa e com instituições flexíveis - são, desde logo, simplesmente uma apropriação sem reconhecimento do que anarquistas como Kropotkin haviam proposto há muito tempo. Mas para Porritt, esta visão restringe-se a uma política partidária. Como figura mediática, Porritt interpreta de maneira completamente errónea o que é o anarquismo - e, portanto, uma sociedade descentralizada. Este não promulga o retiro para a oração, a auto-indulgência ou a meditação, independentemente de que olhe para o seu umbigo ou cante mantras. É simplesmente hostil à política parlamentar ou de partidos. A única democracia que crê válida é a democracia participativa e considera pôr um X num papel a cada quatro ou cinco anos é simplesmente uma farsa, pois apenas serve para dar uma justificação ideológica aos ostentadores do poder numa sociedade que é fundamentalmente hierárquica e anti-democrática. Há anarquistas de muitos tipos. Sustentaram, portanto, várias formas de desafiar e transformar o sistema actual de violência e desigualdade - através de comunas, resistência passiva, sindicalismo, democracia municipal, insurreição, acção directa e educação. Uma das razões pela qual os anarquistas realçaram a publicação de propaganda e a educação é que sempre consideraram a organização dos partidos como violenta.  Os anarquistas foram sempre muito críticos da noção de partido vanguardista, por lhes parecer que leva obrigatoriamente a certo tipo de despotismo. E em relação às Revoluções Francesa e Russa, a história mostrou que as suas premonições eram correctas.

6. Uma crítica consistente ao anarquismo elaborada pelos marxistas é que é utópico e romântico: uma ideologia camponesa ou pequeno-burguesa, uma manifestação de sonhos milenaristas. Os estudos históricos de John Hart sobre o anarquismo e a classe operária mexicana (1978) e de Jerome Mintz sobre Los anarquistas de Casas Viejas em Espanha (1982) refutaram, de forma mais do que suficiente, alguns destes falsos preconceitos sobre o anarquismo. O movimento anarquista não ficou confinado ao campesinato: floresceu entre os trabalhadores urbanos onde o anarco-sindicalismo se desenvolveu. Tão pouco é utópico ou milenarista. Os anarquistas criaram colectividades reais e sempre foram muito críticos com a religião. Como as diversas obras de Reclus ou Berkman atestam, nenhum dos primeiros anarquistas esperava uma mudança imediata, ou cataclismo, através da "propaganda pelo acto", ou da "greve geral". Eles sabiam que seria um caminho longo.

7. Outra crítica ao anarquismo é que tem uma concepção muito estreita da política, que vê o Estado como a fonte de todo o mal, ignorando outros aspectos da vida económica e social. Esta é uma representação falsa do anarquismo que deriva parcialmente da forma como o anarquismo foi definido, e da tentativa dos historiadores marxistas de excluir o anarquismo do movimento socialista mais amplo. Mas quando examinamos os escritos de anarquistas clássicos como Kropotkin, Goldman, Malatesta e Tolstoi, assim como o carácter dos movimentos anarquistas em lugares como a Itália, México, Espanha e França, torna-se evidente que nunca existiu esta visão tão limitada. Sempre desafiou todas as formas de autoridade e exploração e foi tão crítico com o capitalismo e a religião como o foi com o Estado. Muitos anarquistas eram feministas, muitos lutaram contra o racismo e lutaram pela liberdade das crianças. A crítica ecológica e cultural ao capitalismo foi sempre uma dimensão importante dos escritos anarquistas. Por isso, as obras de Tolstoi, Reclus e Kropotkin são ainda actuais.

8. Uma última crítica ao anarquismo é que é pouco realista: a anarquia nunca funcionará. O socialista de mercado David Miller representa este ponto de vista no seu conhecido livro Anarchism (1984). A sua atitude face ao anarquismo é a de "cara ou coroa". Admite que existiram comunidades baseadas nos princípios anarco-comunistas, que inclusive obtiveram algum êxito inesperado. Contudo, afirma que devido à falta de apoio popular e à intervenção estatal e à repressão, sempre fracassaram. Por outro lado, argumenta que de nenhum modo as sociedades poderiam existir sem algum tipo de governo centralizado. Miller parece ignorar a longa existência do que Stanley Diamond (1974) chamou de "comunidades de parentesco" dentro, e frequentemente em oposição, dos sistemas estatais, e que redes comerciais existiram ao longo da história, incluindo entre os caçadores-recolectores, sem nenhum tipo de controle estatal. O Estado, de qualquer forma, é um fenómeno recente e a sua forma actual de Estado-nação tem tão só quinhentos anos de existência. As comunidades humanas existiram por muito tempo sem autoridade central ou coerciva. Se é possível a existência de uma sociedade tecnologicamente complexa sem autoridade não é uma questão fácil de responder. Tão pouco é uma questão que deva evitar-se. Muitos anarquistas crêem que a dita sociedade é possível, ainda que a tecnologia deva existir numa "escala humana". Os sistemas complexos existem na natureza sem que haja neles nenhum mecanismo de controlo. De facto, muitos teóricos globais contemporâneos começam a vislumbrar o panorama social libertário que pode emergir na era da tecnologia informática. Não é necessário dizer que, se Miller tivesse aplicado o mesmo critério pelo qual julga o anarquismo - justiça distributiva e bem-estar social - ao capitalismo e ao "comunismo" de Estado, então possivelmente haveria declarado esses sistemas pouco práticos e pouco realistas. Mas pelo menos Miller quer resgatar o anarquismo dos desperdícios da história, e ajudar-nos a conter os abusos de poder e a manter vivas as possibilidades de relação sociais livres.

2 comentários :

  1. Olá,

    gostaria de publicar este artigo no meu blog referindo, obviamente, a sua fonte. Poderá ser possível?

    Sociedade Alienada


    Com os melhores cumprimentos,
    --
    R. Saraiva

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  2. Claro que sim Ricardo. Abraço libertário.

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