por Nola Anarchy
Há toda a probabilidade de já ter ouvido algo sobre quem são os
anarquistas e naquilo em que supostamente acreditam. Há toda a
probabilidade de que quase tudo o que ouviu dizer sobre eles seja falso.
Muitas pessoas parece que pensam que os anarquistas são adeptos da
violência, do caos e da destruição, que se opõe a todas as formas
de ordem e de organização, que são niilistas fanáticos que querem
rebentar com tudo. Na realidade, nada poderia ser mais longe da verdade.
Anarquistas, são as pessoas que simplesmente pensam que os seres
humanos podem comportar-se de modo razoável sem terem de ser coagidos a
isso. É uma noção muito simples, realmente. Mas é aquela noção que os
ricos e os poderosos sempre acharam a mais perigosa.
Na sua
expressão mais simples, as crenças anarquistas giram em torno de duas
premissas. A primeira é que os seres humanos são, em circunstâncias
vulgares, tão razoáveis e decentes quanto lhes permitam ser, e portanto
que se podem auto-organizar e às suas comunidades sem necessitarem que
lhe indiquem como. A segunda é que o poder corrompe. Antes do mais, o
anarquismo é antes uma questão de ter a coragem de tomar os princípios
simples de decência comum pelos quais nos guiamos e de os seguir até às
suas conclusões lógicas. Por muito insólito que isto pareça, em muitos
aspectos importantes, você já é anarquista – apenas não se apercebe
disso.
Talvez ajude tomar alguns exemplos do dia a dia: se há
uma fila para apanhar um autocarro quase cheio, vai esperar pela sua vez
e refrear-se de passar à frente das outras pessoas, mesmo na ausência
de polícia? Se respondeu «sim», então está habituado/a a agir como
anarquista! O princípio anarquista mais fundamental é
«auto-organização»: o assumir-se que os seres humanos não precisam ser
ameaçados com sanções em ordem a alcançarem um grau de compreensão
recíproca de uns com os outros, ou de tratar cada qual com dignidade e
respeito.
Qualquer pessoa pensa que é capaz de se conduzir de
maneira razoável. Se pensa que a lei e a polícia são necessárias, é
apenas porque não acredita que outras pessoas o sejam. Mas se parar para
reflectir, não terão elas o direito de pensar exactamente o mesmo em
relação a si? Os anarquistas argumentam que quase todo o comportamento
anti-social que nos faz pensar que é necessária a existência de forces
armadas, de polícia, de prisões e de governos para controlar as nossas
vidas, é de facto causado pelas desigualdades sistemáticas e injustiça
que tais forças armadas, polícia, prisões e governos tornam possível. É
tudo um círculo vicioso. Se as pessoas estão acostumadas a serem
tratadas como se as suas opiniões não importam, é provável que se tornem
agressivas e cínicas, mesmo violentas – o que, claro, torna a tarefa
fácil para os que estão no poder em dizer que as suas opiniões não
contam. Logo que se apercebem que as suas opiniões realmente são
importantes tal como as de qualquer outra pessoa, tendem a tornar-se
muitíssimo mais abertas. Para abreviar uma longa história: os
anarquistas acreditam que, em grande parte, é o próprio poder e as
consequências desse mesmo poder, que tornam as pessoas estúpidas e
irresponsáveis.
É membro de um clube desportivo ou equipa de
desporto ou de qualquer outra organização voluntária onde as decisões
não sejam impostas por um chefe mas tomadas na base do consenso geral?
Se respondeu «sim», então pertence a uma organização que trabalha de
acordo com os princípios anarquistas! Outro princípio básico é a
associação voluntária. Isto é apenas uma questão de aplicar os
princípios democráticos à vida de todos os dias. A única diferença é que
os anarquistas acreditam que deveria ser possível que existisse uma
sociedade em que cada coisa fosse organizada segundo esses princípios,
todos os grupos baseados no consentimento livre de seus membros, e
portanto, todo esse estilo de organização de cima para baixo, militar
como os exércitos, ou as burocracias ou as grandes corporações, baseadas
em cadeias de comando, já não seriam necessárias. Talvez não acredite
que tal seja jamais possível. Talvez sim. Mas de cada vez que chega a um
acordo por consenso, em vez de ameaça, cada vez que faz uma combinação
voluntária com outra pessoa, chega a um reconhecimento recíproco ou
alcança um compromisso tendo na devida consideração a situação ou
necessidades particulares do outro, está sendo um/a anarquista, mesmo se
não tem consciência disso.
O anarquismo é apenas o modo como
as pessoas agem quando têm liberdade para agir de acordo com a sua
escolha e quando negoceiam com os outros que são igualmente livres – e
portanto, conscientes da responsabilidade face aos outros que isso
implica. Isto conduz a outro ponto crucial: enquanto as pessoas podem
ser razoáveis e terem consideração enquanto estão intercambiando com
iguais, a natureza humana é tal que não se pode acreditar que o façam
quando se lhes dá poder sobre os outros. Dê a alguém tal poder, essa
pessoa irá abusar dele de uma forma ou de outra.
Pensa que a
maioria dos políticos são porcos egocêntricos, egoístas, que não se
importam realmente com o interesse público? Pensa que vivemos num
sistema económico que é estúpido e injusto?
Se respondeu «sim»,
então subscreve a crítica anarquista da sociedade contemporânea – pelo
menos nos seus aspectos mais gerais. Os/as anarquistas pensam que o
poder corrompe e que aqueles/as que passam a vida inteira em busca de
poder são as últimas pessoas a quem ele deveria ser dado. Os/as
anarquistas pensam que o nosso sistema económico actual tem mais
probabilidades de premiar as pessoas por comportamentos egoístas ou sem
escrúpulos do que as que são seres humanos decentes, preocupados com os
outros. A maioria das pessoas tem esses sentimentos. A única diferença é
que a maioria das pessoas não acredita que nada possa ser feito acerca
disso ou de que – e é nisto o que os fiéis servidores do poder costumam
insistir) – possa ser feito algo que não acabe por tornar as coisas
ainda piores.
Mas… e se não fosse verdade? Haverá realmente uma
razão válida para acreditar nisso? Quando se pode realmente testá-las, a
maioria das previsões sobre o que aconteceria sem estados ou
capitalismo acaba por se mostrar realmente não fundamentada.
Durante milhares de anos as pessoas viveram sem governos. Em muitas
partes do mundo há povos que vivem fora do controlo dos governos, mesmo
nos dias de hoje. Eles não se andam a matar reciprocamente. Apenas vivem
as suas vidas, como qualquer outra pessoa faria. Claro que numa
sociedade complexa, urbana, tecnológica há muito mais necessidade de
organização: mas a tecnologia pode também tornar esses problemas mais
fáceis de resolver. De facto, nem sequer começámos a pensar como seriam
as nossas vidas se a tecnologia fosse posta realmente ao serviço das
necessidades dos humanos. Quantas horas precisaríamos de trabalhar em
ordem a manter a sociedade funcional – ou seja, se nos víssemos livres
das ocupações inúteis ou destrutivas como o telemarketing, os advogados,
os guardas prisionais, os analistas financeiros, os peritos de relações
humanas, os burocratas e os políticos e redireccionar as nossas
melhores cabeças científicas dos sistemas de armamento espaciais ou do
mercados de acções para mecanizarem as tarefas maçadoras ou perigosas
tais como mineração de carvão ou limpeza da casa de banho, e distribuir o
trabalho remanescente por todas as pessoas igualmente? Quatro horas por
dia? Três? Duas? Ninguém sabe porque ninguém está sequer a perguntar
este tipo de pergunta. Os/as anarquistas pensam que estas são
exactamente o tipo de perguntas que deveríamos começar a perguntar.
Acredita realmente nas coisas que diz aos seus filhos (ou que os seus
pais lhe contaram)? «Não importa quem começou», «dois males não fazem um
bem», «limpa tu mesmo/a o chiqueiro que fizeste», «faz, pensando nos
outros...», «não sejas mesquinho/a com as pessoas porque te parecem
diferentes». Talvez devêssemos decidir se estamos mentindo aos nossos
filhos quando lhes falamos do bem e do mal, ou se estamos realmente a
tomar a sério as nossas próprias sentenças. Porque se levar estes
princípios morais às suas conclusões lógicas, chega ao anarquismo.
Tome o princípio de que dois males somados não produzem um bem. Se
tomasse isso realmente a sério, apenas isso bastaria para deitar por
terra, quase totalmente, a base de todo o sistema bélico e de justiça
criminal. O mesmo se passa com a partilha: estamos sempre a dizer às
crianças que têm da aprender a partilhar, a terem em conta as
necessidades de uns e de outros, a ajudarem-se mutuamente; depois,
quando vamos para o mundo real assumimos que cada um é naturalmente
egoísta e competitivo. Um/a anarquista irá chamar a atenção: de facto, o
que dizemos aos nossos filhos está certo. Muito do que foi alcançado na
história da humanidade, cada descoberta ou feito que melhorou a vida
das pessoas, veio por cooperação e ajuda mútua; mesmo agora, a maior
parte de nós gasta mais com sua família e com os amigos do que connosco
próprios; embora, sem dúvida, irá sempre haver pessoas competitivas
neste mundo, não é uma razão para a sociedade basear-se no encorajamento
de tal comportamento e muito menos fazer as pessoas competir para
alcançar as necessidades básicas da vida. Uma sociedade que apenas
encoraja a competição, apenas serve os interesses dos que estão no
poder, que querem que vivamos com receio um do outro. Por isso é que
os/as anarquistas propõem uma sociedade baseada não só na associação
livre mas também na ajuda mútua.
O facto é que a maior parte
das crianças cresce acreditando numa moral anarquista e gradualmente têm
de aperceber-se que o mundo adulto não funciona dessa maneira. Eis
porque tantos adultos são rebeldes, alienados ou até suicidas enquanto
adolescentes, acabando por se resignarem e azedarem quando adultos; a
sua única compensação, frequentemente, é ter capacidade para educar os
seus próprios filhos e desejar que para estes o mundo seja justo. Mas
porque não começarmos por construir um mundo que seja realmente baseado
nos princípios da justiça? Não seria esse o melhor presente que
poderíamos dar aos nossos filhos?
Acredita que o ser humano é
fundamentalmente corrupto e mau ou que alguns tipos de pessoas
(mulheres, pessoas de cor, povo comum que não é nem rico nem tem
estudos) são espécimes inferiores, destinados a serem governados por
alguém melhor que eles? Se a sua resposta é «sim», então, bem, parece
que não é anarquista ao fim e ao cabo. Mas se respondeu «não», então há
probabilidades de que já perfilhe 90% dos princípios anarquistas, e –
esperamos - esteja a viver a sua vida de acordo com eles. Sempre que
tratar outro ser humano com consideração e respeito está sendo
anarquista. De cada vez que resolve as suas divergências com outros
através de um compromisso razoável, ouvindo o que cada um tem para dizer
em vez de deixar que alguém decida em nome das restantes, está sendo
anarquista. De cada vez que tem oportunidade de forçar alguém a fazer
algo, mas, em vez disso, decide apelar ao seu senso de razão ou de
justiça, está sendo anarquista. O mesmo se passa quando partilha algo
com um/a amigo/a, ou decide quem vai lavar a loiça, ou outra coisa com
um sentido de equidade.
Claro, poderá objectar que tudo bem
enquanto se trata de pequenos grupos de pessoas que se relacionam
mutuamente, mas para gerir uma cidade ou um país, é um assunto
totalmente diferente. E, claro, isto tem razão de ser. Mesmo se
descentralizar a sociedade e puser tanto poder quanto possível nas mãos
de pequenas comunidades, haverá – apesar de tudo- imensas coisas que
precisam de ser coordenadas, desde administrar caminhos de ferro até
decidir sobre que aspectos a investigação em medicina se deve debruçar.
Mas apenas porque algo é complicado não quer dizer que não haja maneira
de realizá-lo. Apenas quer dizer que será complicado. De facto, os/as
anarquistas têm muitas ideias sobre como é que uma sociedade saudável,
democrática deveria autogerir-se. Para as explicar é preciso de ir muito
para além deste pequeno texto introdutório; de qualquer forma, não há
nenhum/a anarquista que pretenda possuir o modelo perfeito. A verdade é
que nem conseguimos imaginar metade dos problemas que irão surgir quando
tentarmos criar uma sociedade democrática; mesmo assim, acreditamos que
a capacidade dos humanos está à altura de resolvê-los desde que a
humanidade se conserve dentro do espírito de nossos princípios básicos-
tais princípios são, ao fim e ao cabo, apenas os princípios de decência
humana fundamental.
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