Saul Newman
O pós-anarquismo emerge como uma nova corrente importante no
pensamento anarquista, e vem se tornando fonte de crescente interesse e
debate entre ativistas anarquistas e pesquisadores afins, bem como em
círculos acadêmicos mais amplos. Dado o número de sites na internet,
grupos de discussão, livros sendo lançados e periódicos aparecendo sobre
o pós-anarquismo, é hora deste desafio colocado ao pensamento e à
prática anarquista clássica ser levado mais a sério.
Pós-anarquismo se refere a um amplo corpo teórico – arrolando teoria
política, filosofia, estética, estudos de filmes e literatura – que
tenta explorar novas direções no pensamento e na política anarquista. Ao
passo que inclui diferentes perspectivas e trajetórias, a contenção
central do pós-anarquismo é que os novos fenômenos culturais e
diretrizes teóricas devem ser levados em conta pela filosofia anarquista
clássica, em particular, a pós-modernidade e o pós-estruturalismo. Ao
passo que estas categorias teóricas causaram grande impacto sobre
diferentes áreas do pensamento e da pesquisa, bem como na política, o
anarquismo tende a permanecer resistente a estes desdobramentos e
continua a trabalhar com um framework1 epistemológico humanista do Esclarecimento, o qual, ao ver de muitos, é necessário atualizar [updating].
Ao mesmo tempo em que o anarquismo – como forma de prática e teoria
política – está se tornando cada vez mais importante para os movimentos
sociais globais e as lutas radicais de hoje, suplantando o marxismo em
grande medida. O pós-anarquismo busca revitalizar a teoria anarquista à
luz destas novas formas de luta e resistência. Entretanto, ao invés de
abandonar a tradição do anarquismo clássico, o pós-anarquismo busca, ao
contrário, explorar seu potencial e radicalizar as suas possibilidades.
Permanecendo completamente coerente, eu sugeriria, com o horizonte
libertário e igualitário do anarquismo; ainda que procure ampliar os
termos do pensamento anti-autoritário para incluir uma análise crítica
da linguagem, do discurso, da cultura e das novas modalidades do poder.
Nesse sentido, o pós-anarquismo não entende que o pós signifique
simplesmente vir “após” o anarquismo, mas pós no sentido de trabalhar os
limites do pensamento anarquista e expandi-los, revelando suas
imprevisíveis e heterogêneas possibilidades.
Esta edição [da Revista] explora algumas destas novas abordagens à
teoria e a prática anarquista. O ensaio de Benjamin Noys é importante a
esse respeito, pois busca realçar uma série de problemas e limitações
conceituais e práticas que estas novas abordagens anarquistas por vezes
se deparam. Seu ensaio explora a proximidade – bem como a distância
crítica – do pensador contemporâneo Alain Badiou ao anarquismo. Ao passo
que o pensamento político de Badiou parece refletir certas idéias
anarquistas sobre política radical, autônoma em relação ao Partido e ao
Estado, ele também é extremamente crítico ao anarquismo, e especialmente
ao que ele enxerga como sendo o elemento libertário do movimento
anticapitalista global. Para Badiou, esses “ativistas” anti-globalização
– inspirando-se em temas de fluxo, fluxos de desejo e
desterritorialização, derivados de pós-estruturalistas como Deleuze e
Guatarri, bem como Hardt e Negri – fetichizam e, em certo sentido,
mimetizam o próprio movimento do capitalismo global, sendo incapazes de
ganhar dele qualquer distânciamento crítico. Noys usa essa crítica para
trabalhar questões de estratégia, organização e coerência, que são
centrais para a política anti-autoritária radical de hoje – por exemplo,
a questão de se há verdadeiramente uma prática política anarquista
contemporânea e se ela poderia avançar algum ponto prescindindo de
alguma forma de organização; e ainda, a noção de organização poderia ser
repensada para se permitir a forma partidária, mas de modo
não-conflitante com o compromisso anarquista com formas descentralizadas
e não-hierárquicas de militância?
Ao contrário do que certos ativistas e pesquisadores anarquistas
afirmam, o pós-anarquismo não está confinado ao mundo das abstrações
teóricas; mas diz respeito a formas concretas de política ativista. No
ensaio de um dos maiores teóricos do anarquismo pós-estruturalista2,
Todd May oferece uma interpretação pós-anarquista de um movimento
político no Canadá que luta pelo direito dos imigrantes “ilegais”
algerianos, os sans-statuts (aqueles sem status legal de
refugiado). A questão dos imigrantes “ilegais” e dos direitos daqueles
que, como dizia Arendt, nem ao menos tem o direito de terem direitos,
está emergindo como um dos grandes pontos de antagonismo no capitalismo
global – lugar para o novo barbarismo biopolítico da soberania de
estado, bem como lugar para a emergência de novas formas de política e
ativismo radical3. May utiliza o pensamento do filósofo Jacques
Rancière4 – que a seu ver faz uma grande contribuição ao anarquismo e às
teorias políticas radicais em geral – para explorar uma lógica política
baseada na pressuposição da igualdade. Para Rancière, a política se
inicia com o fato da igualdade, ao invés de enxergá-la como objetivo a
ser alcançado – e a asserção de tal fato como elemento de uma campanha
política particular tem o potencial de romper com a ordem política e
social existente, baseada sobre relações de desigualdade, hierarquia e
autoridade (que Rancière chama de “ordem policial”). Do mesmo modo, como mostra May, os algerianos sans-statuts
no Canadá – aqueles absolutamente excluídos da ordem dominante e
relegados à base da hierarquia social – foram capazes de se mobilizar
como se fossem absolutamente iguais ao restante da sociedade e como se
tivessem os mesmos direitos que qualquer outro. Ao meu ver, este é um
genuíno exemplo de política “pós-anarquista”: uma luta concreta,
localizada, enraizada, engajada por aqueles diretamente interessados,
mas que, importantemente, são ao mesmo tempo capazes de transcender sua
posição de particularidade e inscreverem-se no horizonte universal da
igualdade.
A questão da universalidade é importante para o pós-anarquismo, e é
esta questão que Benjamin Franks desenvolve em relação à ética. Franks
explora a dimensão ética da teoria anarquista e pós-anarquista, e tenta
desenvolver uma compreensão de ética que, por um lado permita a
universalização do imperativo categórico kantiano, e por outro, um
subjetivismo ético que Franks atribui a Max Stirner e (um tanto
injustamente eu penso) a mim5. Para Franks, ambas as posições são
incompatíveis com a prática política anarquista. Como alternativa, ele
propõe a noção de éticas internas às práticas e identidades
particulares, negociáveis no tempo e abertas ao diálogo crítico. Franks
está correto em mostrar que o anarquismo está profundamente preocupado
com as questões éticas e seu ensaio faz uma importante contribuição ao
pensar uma forma propriamente anarquista de ética, enquanto fundamentada
em práticas particulares e situações concretas, e ainda propondo certas
normas e regras que fomentam relacionamentos solidários e
não-hierárquicos com os outros. Eu concordo inteiramente com sua
abordagem ética, e acrescentaria simplesmente que ela é inteiramente
compatível com o pós-anarquismo. Apesar do que muitos críticos alegam – e
esta alegação está mais ou menos presente no ensaio de Franks – o
pós-anarquismo não equivale ao niilismo moral e ao subjetivismo ético.
Nem sequer a filosofia do egoísmo de Stirner – como tentei mostrar em
outro lugar – prescinde de uma ética, e, com efeito, ainda oferece
margem a certas formas de solidariedade social, implícitas em sua noção
de “associação dos egoístas”. De todo modo, Franks faz uma intervenção
importante explorando os contornos ético-políticos do pensamento
anti-autoritário contemporâneo. Ao lado da ética, outro grande interesse
do pós-anarquismo é o papel das imagens, dos símbolos e da linguagem na
construção das identidades e significados políticos. Diferentemente dos
anarquistas clássicos, que viam uma coerência racional nas relações
sociais e na base destas identidades sociais uma essência humana, uma
análise pós-anarquista privilegiaria por sua vez a função da linguagem e
da ordem simbólica na criação dos significados sociais e políticos.
Entretanto, ao invés dos significados e identidades serem fixos a uma
estrutura estável, eles são inerentemente instáveis e abertos a
diferentes e contingentes articulações. Este ponto precisamente é
enfatizado por Lewis Call, que desenvolve uma abordagem
caracteristicamente pós-moderna às práticas e discursos
anti-autoritários, através de uma análise da cultura popular, em
particular do filme e da literatura6. Em seu ensaio, ele explora a graphic novel (1981), e depois a versão filme (2006), V de Vingança
[V for Vendetta], enxergando-a como um tipo de narrativa política
pós-anarquista. Aqui é central a noção de “significante flutuante” –
derivada da psicanálise lacaniana – na qual um símbolo ou uma palavra em
particular não estão fixos a um conteúdo particular qualquer, mas são
móveis e podem produzir diferentes significados. Os exemplos que Call
nos dá são os da figura histórica de Guy Fawkes, e também o do
personagem “V” que invoca Fawkes diretamente como símbolo de resistência
contra a autoridade do Estado. Em particular “V”, porque permanecendo
mascarado, e deste modo anônimo, opera como um tipo de presença vazia
pela qual a autoridade política é desestabilizada e uma resistência
coletiva é mobilizada. A importante lição a se destacar da análise de
Call é que a dominação política reside em certo controle e manipulação
dos símbolos, imagens e discursos – e, portanto, qualquer resistência
efetiva deve almejar uma desestabilização e uma re-significação destas
mesmas formas. A luta contra a autoridade toma lugar a nível simbólico e
até mesmo visual – com efeito, não há aqui separação entre política
simbólica e política “efetiva”. Para ver exemplos disso, basta ver os
usos politicamente inovadores e criativos de símbolos e imagens nas
manifestações globais de anti-capitalismo.
Um pensador que admite a importância do visual e da estética na
política radical é Jacques Rancière, a quem me referi acima. Em sua obra
mais recente, Rancière ao refletir a ligação entre arte e política
enfatizou o significado político da estética, particularmente na idéia
de que a política perturba os “regimes” de visibilidade existentes7. A
política, em outras palavras, diz respeito a conflitos que giram em
torno daquilo que é visível e invisível, e a arte, portanto, pode
contribuir para uma reconfiguração da percepção e do espaço,
através da qual novos significados políticos possam emergir. Numa
entrevista conduzida por mim, Noys e May, Rancière reflete sobre a
posição do artista, bem como as implicações “anarquistas” de seu próprio
pensamento político, e responde a questões mais gerais sobre o estado
da política radical de hoje. Como o leitor já deve ter percebido, vejo
Rancière como um pensador cuja obra tem grandes implicações para o
anarquismo: ao passo que se aparta do anarquismo clássico em importantes
aspectos – particularmente ao rejeitar a oposição conceitual entre
Estado “artificial” e Sociedade “natural” – também propõe novos modos de
pensar a emancipação, a igualdade, a democracia e a política
anti-autoritária.
Como mostra esta edição, o pós-anarquismo não é uma doutrina ou
prática política unificada, e levanta muito mais questões e problemas do
que respostas. É melhor enxergá-lo como um campo de pesquisa que
procura explorar, desenterrar, interrogar, repensar e revitalizar muitos
aspectos da teoria anarquista. Mas, uma coisa é certa: a situação
contemporânea exige que o anarquismo seja pensado e praticado novamente.
Notas do Autor:
1. Isso foi descrito por Isaiah Berlin para envolver um compromisso
com três princípios: que todas as genuínas questões podem ser
respondidas; que todas perguntas são conhecíveis e que todas as
respostas devem também ser compatíveis. Ver Roots of Romanticism (1999,
pp. 21-2) – RK. N. do A.
2. Ver Todd May, The Political Philosophy of Poststructuralist
Anarchism, University Park PA: University of Pennsylvania Press, 1994.
N. do A.
3. Ver por exemplo a network de ação direta No Borders. N. do A.
4. May escreveu extensivamente sobre Rancière, e publicou um livro
entitulado The Political Thought of Jacques Rancière: creating equality,
Edinburgh: Edinburgh University Press, 2008. N. do A.
5. Franks define estes termos em seu ensaio – RK. N. do A.
6. Ver Lewis Call, Postmodern Anarchism, Lanham MD: Lexington Books, 2003. N. do A.
7. Ver Jacques Ranciere, The Politics of Aesthetics: the distribution
of the sensible, trans. Gabriel Rockhill, New York: Continuum, 2004. N.
do A.
Original: Anarchist Studies; Volume 16, 2008 No.2. Editorial, Saul Newman.
EDITORIAL; ANACHIST STUDIES v. 16.2
Tradução de Literatura Anarquista
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