Esta é uma das histórias que gostaríamos que nos tivessem sido contadas quando éramos pequenos. Por estranho que pareça, ou não, uma história com algumas ideias e constatações simples que a maioria das pessoas acharia sensatas, mas que foi "desaconselhada" de ser contada em algumas escolas. Recomenda-se, portanto, a leitura às crianças desta e de outras histórias com a mesma natureza, de preferência antes que entrem nas jotas. Mais tarde vão agradecer.
(desenho de José Pedro) |
O rei dava voltas e voltas à roda da mesa, enquanto pensava. Via o seu povo triste, macambúzio, trabalhando as terras sem entusiasmo, de cabeça baixa, sem nunca sorrir. Ele, o rei, gostava de pessoas alegres, não podia ver assim tanta gente triste... Ele gostava de alegria.
– Chamem o meu conselheiro – gritou aos seus lacaios.
Quando chegou o conselheiro, um homem já muito velho, curvado, de longas barbas brancas, o rei perguntou:
– Que hei-de eu fazer para que o povo trabalhe alegremente?
–
Eles plantam batatas. Em dez, uma é para eles, que são muitos, as
outras nove são para Vossa Majestade. É por isso que andam tristes. Se
plantassem menos teriam mais tempo para rir, para brincar e fazer outras
coisas.
– Hum,... Mas se eles ficassem sem nenhumas batatas, ficariam com fome e não teriam forças para trabalhar...
– Mas, Vossa Majestade, Vós sois só um, para que quereis tantas batatas? Se ficásseis apenas com as que comeis...
– Não!! – o rei já estava a ficar irritado com o conselheiro – e o resto da corte, que iria comer? Que iriam comer os soldados?
– Vossa
Majestade, para que quereis Vós tantos soldados? Se eles não fossem
soldados estariam a cultivar a sua comida e assim eram menos batatas que
os agricultores teriam que plantar... Menos batatas, mais tempo para
brincadeiras, mais felizes andavam. Pensai nisso, Majestade... Por outro
lado, os soldados também andariam felizes e contentes. Isto de andar em
guerra a torto e a direito não deixa ninguém feliz...
–
Um Reino sem soldados? Temo que o meu conselheiro esteja doido. Um
Reino sem soldados – repetia o Rei, continuando às voltas à mesa –
éramos logo invadidos pelo rei vizinho, que anda desejoso de pôr cá a
pata...E como mantinha a ordem?
– Majestade, se não parais de dar voltas à mesa, o tapete vai-se romper – avisou o conselheiro, já tonto.
–
Oh meu Deus! O meu tapete persa... O último carregamento foi pirateado
pelo maldito pirata perna de pau, olho de vidro, e cara de mau. Só já
tenho novecentos e noventa e nove tapetes, em armazém...
–
Majestade para que quereis tantos tapetes? Pensando bem o pirata perna
de pau, olho de vidro e cara de mau tem o mesmo direito que Vossa
majestade... Ou seja, nenhum... A bem da verdade, os tapetes pertencem a
quem os faz.
–
Conselheiro!!!!!!!!!!! Estais louco. Primeiro, quereis que os
agricultores plantem menos batatas, depois, quereis que deixe de ter
soldados e agora, dizeis que o pirata tem o mesmo direito que eu? Eu sou
um REI. Ouviste bem? Um REI – gritava o Rei, totalmente enfurecido com o
conselheiro. Soldados, soldados, levai o conselheiro e cortai-lhe a
cabeça. Para que serve um conselheiro que dá conselhos estúpidos?
Cortai-lhe a cabeça imediatamente.
Vieram os soldados e levaram o velho conselheiro. No caminho, um dos soldados mais jovem disse:
– E se não matássemos o velho conselheiro? Não me pareceram nada estúpidos os seus conselhos...
– Tu estás a dar a ideia de desobedecer ao Rei? Tu, que juraste fidelidade e obediência ao Rei?
–
Não, não estou a dar ideia nenhuma – argumentou o jovem soldado,
temendo que a sua cabeça fosse a próxima a rolar – estava apenas a
pensar.
– Como te atreves a pensar? Olha o que vai acontecer ao conselheiro por pensar. Vai ficar sem cabeça...
Quando
os soldados chegaram ao topo do monte, o sítio onde as cabeças dos que
enfureciam o rei eram cortadas, o velho conselheiro riu-se e disse:
– Mais vale, ficar sem cabeça, que viver uma vida triste.
À
noite o jovem soldado recordou com tristeza o conselheiro. Pegou num
cadernito onde escrevera todos os conselhos que levaram à morte o
conselheiro e também a frase proferida momentos antes da morte. Depois,
escondeu muito bem o cadernito.
–
No dia seguinte, o Rei ordenou aos soldados que procurassem um outro
conselheiro, um que fosse bom, e ser bom era dar conselhos que
agradassem ao Rei.
Passados dias, chega ao castelo um jovem que se propõe a conselheiro.
–
O primeiro conselho é deixarmos de utilizar essa linguagem tão nobre.
Falemos então no presente do indicativo... Um Rei tem que ser moderno, o
povo tem que acreditar que o Rei gosta tanto do seu povo que até usa as
suas falas... (até porque isto, mais tarde, vai dar uma trabalheira a
quem escrever esta história).
–
Hum, hum... Eu sou o Rei. Como posso usar as falas do povo? – interroga
o Rei, já nervoso, e às voltas à mesa. Está-me a parecer que a tua
cabeça também vai rolar.
– Senta-te, que o tapete é novo e, ao que já me constou; em armazém só ficaram novecentos e noventa e oito tapetes.
-
Mas para que queres tantos tapetes? Os barcos deveriam ir cheios de
coisas feitas pelo povo e voltar cheios de ouro... Um rei que se preze
tem que ter muito ouro.
–
Essa ideia do ouro agrada-me – o Rei estava agora já mais calmo – MUITO
OURO, um trono de ouro, uma cama de ouro, pratos, copos e talheres de
ouro, roupa de ouro... Terá este castelo tanto ouro, que irá brilhar
mais que o Sol. Continua conselheiro.
–
Estou ali a ver um quinhão de terra por cultivar – diz o conselheiro,
olhando da janela – Não pode ser assim. Temos que dar a isto uma grande
volta...
– Não sei o que se passa. Eles andam tristes, não querem trabalhar e até se revoltam...
–
Mas isto não pode ser assim. Tens que pagar um salário aos
trabalhadores... dar um dia de folga... eles têm que ter dinheiro para
gastar... não sei se estás a ver bem a coisa. Se tiverem dinheiro, vão
logo gastá-lo, a comprar porcarias, logo as fábricas terão que produzir
mais... sim, vamos pensar nas batatas, mas também pensaremos nas
fábricas, mais produção, mais consumo, mais impostos...
–
Mais impostos, mais ouro para mim – concluía o Rei esfregando as mãos
de contentamento. Mas como vamos convencer o povo a produzir
alegremente?
Agora era o conselheiro que dava voltas à mesa e, ao fim de muitas horas, já o tapete tinha um colossal buraco, exclama:
–
Já sei! Vamos fazer escolas para todos, espalharemos a ideia que só se
pode ser feliz trabalhando... escolas para ensinarem esta máxima,
escolas para ensinarem que o consumo é bom. As pessoas todas vão querer
ter dinheiro para gastar em porcarias e vão trabalhar muito. Quanto mais
trabalharem mais rico ficará Vossa Majestade.
Ahahahhahahahahhahahahah
- o Rei rebolava no chão às gargalhadas - que ideia tão boa! Ele teria
um povo feliz e seria, ao mesmo tempo, muito, muito rico.
O
jovem soldado que se tinha oposto à morte do velho conselheiro, tremeu
de medo perante aquela ideia tão cruel. Quando chegou a casa; apontou no
seu caderninho o plano malvado do rei. Tinha esperança que aquele
caderninho um dia mudasse o mundo.
(histórias sem pés, nem cabeça – Ana Paula / Liberdade)
Outubro de 2011
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