No entanto, existe a percepção generalizada de que o povo português é particularmente pacato, particularmente submisso e conformado. O fado, a saudade, o mito sebastianista, o enraizamento religioso, traços tão distintivos da nossa cultura, dão expressão a um modo de estar que eu diria simultaneamente estruturante, e que no inconsciente colectivo apelam à resignação e aceitação de um fatal destino, determinado por toda a fonte de autoridade exterior ao indivíduo, seja ela deus ou o estado.
Terá certamente contribuído para a consolidação desta cultura a vivência de cinquenta anos de fascismo – exemplo máximo de submissão de todo um povo a uma fonte única de autoridade - e a curta experiência democrática que até à data pudemos obter.
É certo que nas sociedades modernas o espírito totalitário foi substituído pela ilusão de liberdade individual. Sabemos contudo que o sub-reptício controle do indivíduo se mantém, embora de forma indirecta e camuflada. Como diria Foucault, “os meios actuais através dos quais se efectua o controlo «totalizante» são predominantemente os que passam por um controlo indirecto, por uma aparente «falta de controlo». Os média, a educação e a política cultural, de facto podem produzir um conformismo que na realidade é «planificado» através da falta de estruturação de intervenções culturais, por um lado, e através do potenciamento do consumismo e dos valores individualistas por outro”.
Da potenciação dos valores individualistas decorre a potenciação do papel do indivíduo em sociedade como predominantemente concorrencial, em detrimento do seu papel como membro cooperante da mesma. O “sucesso” individual decorrerá, dentro desta ordem de valores, do sucesso de uma guerra latente e permanente entre “si” e o “outro” e não da cooperação interactiva dos sujeitos, em prol de um bem comum. Esta dimensão de alteridade, esta separação entre o “si” e o “outro”, “outro” esse que inevitavelmente se transforma numa ameaça à nossa possibilidade de sucesso (visto como possibilidade única de felicidade) institui uma subsequente hierarquização social e, portanto, uma passiva (até apologética) aceitação de uma incontestada autoridade exterior (o pai, o padre, o governante, o think thanker, o telejornal). Falamos daquilo a que La Boetie chamou a “servidão voluntária”. E não adianta substituir as personagens que assumem o exercício dessa autoridade.
Está assim desenhado o cenário de fundo para que o protesto, a rebelião, ou no fundo, a emergência do “eu” no todo, seja pressentida como inútil, vã, contra-natura ou até patética, ao mesmo tempo que aquele que ousa a insubmissão passa a ser considerado como um idealista louco, na melhor das hipóteses, ou como um “anarquista” terrorista que põe em causa a estabilidade, a lei e a ordem, a autoridade, sem compreender a “natureza das coisas” e a “bondade natural” do governante que decide sempre em conformidade com o bem comum.
Quando nos dizem que não vale a pena protestar porque “eles” (abstracção para governantes, que contudo têm nomes, rostos e instituições bem conhecidas) não nos ouvem, porque “eles” detêm o poder e decidem independentemente da nossa vontade individual, ou quando se alega que a esfera de decisão política é já supra-nacional e global e portanto incontornável, inatingível e imbatível, não estamos mais que a aceitar a hierarquização a que me referi e a inevitabilidade da delegação do poder (e da consequente abnegação do poder individual) numa esfera todo-poderosa que transcende o indivíduo.
Valerá então a pena protestar?
Está à vista de qualquer um que a actual resistência política adquiriu duas novas vertentes. O célebre grito marxista “Proletários de todo o mundo, uni-vos” foi substituído pelo ainda minoritário clamor “Cidadãos de todo o mundo, uni-vos”. A resistência tornou-se global, num processo coevo à diluição das soberanias nacionais. Por outro lado, esta mesma resistência tende a escapar à tradicional formatação institucional, isto é, tende a escapar ao controlo e organização das institucionais estruturas sindicais e partidárias. Parte de grupos de cidadãos, de estudantes, de trabalhadores não sindicalizados, muitas vezes precários, e tece-se na partilha e criação de informação alternativa, na organização de grupos de contestação, de manifestações e concentrações, através das novas tecnologias da informação.
Na minha opinião, esta nova realidade dá expressão a um postulado ético, anterior a qualquer consideração política. Dá expressão à efectiva emergência do “eu” no cenário sub-repticiamente totalizante acima descrito. Por outras palavras, creio que assistimos à crescente percepção de que o comportamento “justo” não reside tanto na concorrência entre indivíduos, mas sobretudo na sua cooperação; na cooperação para o encontro de soluções que sirvam as comunidades. O protesto político assume assim uma dimensão ética.
Inevitavelmente, o espírito cooperante e a dimensão ética do protesto, serão acompanhados pela crescente percepção de que o poder reside efectivamente no cidadão, que voluntariamente e apenas voluntariamente, opta (ou não) por delegá-lo a determinados representantes políticos, sejam eles governantes, partidos políticos ou sindicatos.
Respondendo à questão, eu diria em jeito de conclusão: se as manifestações que hoje tomam forma nas rua de quase toda a Europa não mudarem o curso das opções políticas e económicas que estão hoje em jogo no tabuleiro do mundo, contribuirão seguramente para revolucionar o ambiente social descrito nos primeiros parágrafos; contribuirão para reforçar a percepção do poder que a cada um cabe como membro de uma comunidade; contribuirão para potenciar a dimensão ética da acção política – a exigência de justiça social e a procura de alternativas aos modelos políticos e económicos vigentes. Servirão, em suma, para a recuperação da ameaçada dignidade de cada um e servirão de aviso: a servidão voluntária não é eterna. E já servirão de muito.
Quem , podendo , não manda que o delito se não faça, manda que se faça
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