16 de dezembro de 2011

Doze teses sobre a mudança do mundo sem tomar o poder - John Holloway

I

1. O ponto de partida é a negação.

Nós começamos do grito, não da palavra. Face à mutilação de vidas humanas pelo capitalismo, um grito de tristeza, um grito de horror, um grito de raiva, um grito de repulsa: NÃO. O pensamento, para ser verdadeiro para com o grito, deve ser uma negação. Nós não queremos entender o mundo, mas sim negá-lo. O propósito de teorizar é conceptualizar o mundo negativamente, não como algo separado da prática, mas como um momento de prática, como parte da luta para mudar o mundo, para o tornar num sítio digno à vida humana. Mas como, depois de tudo isso ter acontecido, podemos nós sequer começar a pensar na mudança do mundo?

2. Um mundo digno da humanidade não pode ser criado através do estado.

Ao longo de grande parte do século passado, os esforços para criar um mundo digno de humanidade foram focados no estado e na tomada de poder do estado. As maiores controvérsias (entre “reformistas” e “revolucionários”) foram em como tomar o poder do estado, fosse através de meios parlamentares ou de meios extra-parlamentares. A história do século XX sugere que a questão de como tomar o poder do estado não era muito importante. Em todos os casos, a tomada de poder do estado falhou no que respeita às mudanças esperadas pelos militantes. Nem os governos reformistas nem os governos revolucionários foram bem sucedidos em mudanças radicais no mundo. É fácil acusar todos os líderes destes movimentos de “traírem” os movimentos que lideravam. Todavia, tantas traições sugerem que a falha de governos radicais, socialistas ou comunistas é uma mentira muito mais profunda. A razão pela qual o estado não pode ser usado para trazer mudanças radicais à sociedade, é que o próprio estado é uma forma de relações sociais que está emaranhada na totalidade das relações sociais capitalistas. A melhor existência do estado como uma instância separada da sociedade significa que, seja qual for o conteúdo da sua política, ele toma parte activa no processo de separação das pessoas do controlo das suas próprias vidas. O capitalismo é tão simples como isto: a separação das pessoas da sua própria acção. As políticas orientadas na direcção do estado reproduzem, inevitavelmente, dentro de si o mesmo processo de separação: separando líderes da sua conduta, separando a actividade política séria da actividade pessoal frívola. As políticas orientadas na direcção do estado, longe de trazerem uma mudança radical na sociedade, lideram na subordinação progressiva da oposição à lógica do capitalismo. Agora, nós podemos ver que a ideia de que o mundo podia ser mudado através do estado não passou de uma ilusão. Nós somos suficientemente afortunados para vivermos o fim dessa ilusão.

3. Hoje em dia, a única maneira em que a mudança radical pode ser concebida não é como tomada de poder, mas como dissolução do poder.

A revolução é mais urgente do que alguma vez. Os horrores decorrentes da organização capitalista da sociedade estão a tornar-se cada vez mais intensos. Se a revolução através da tomada de poder do estado provou ser uma ilusão, não significa que devemos abandonar a questão da revolução. Mas devemos pensar nela noutros termos: não enquanto tomada de poder, mas enquanto dissolução de poder.



II

4. A luta pela dissolução do poder é a luta pela emancipação do poder-para (potentia) do poder-sobre (potestas).

Até para pensar na mudança da sociedade sem tomar poder, devemos fazer uma distinção entre poder-para (potentia) e poder-sobre (potestas). Qualquer tentativa para mudar a sociedade envolve fazer, actividade. Fazer, por sua vez, implica que temos a capacidade para fazer, o poder-para-fazer. Com frequência usamos “poder” neste sentido, como algo bom, tal como aquando de uma acção conjunta com outros (uma demonstração, ou até um bom seminário) nos faz sentir “poderosos”. Neste sentido, poder está enraizado no fazer: é o poder-para-fazer. O poder-para-fazer é sempre social, é sempre parte do fluxo social do fazer. A nossa capacidade para fazer é produzida pelo fazer de outros e cria as condições para o fazer futuro de outros. É impossível imaginar um fazer que não se integre, de alguma maneira, com o fazer de outros, passado, presente e futuro.

5. O poder-para é transformado em poder-sobre quando o fazer é quebrado.

A transformação do poder-para em poder-sobre implica a ruptura do fluxo social de fazer. Aqueles que exercem poder-sobre separam o feito do fazer de outros e declaram-no como seu. A apropriação do feito é, ao mesmo tempo, a apropriação dos meios de fazer, e isso permite o poder de controlar o fazer dos executores. Os executores (humanos, entendidos como activos) são aqueles que são separados dos seus feitos, dos meios de fazer e do fazer por si mesmo. Enquanto executores, são separados de si mesmos. Esta separação, que está na base de qualquer sociedade na qual há algum exercício de poder sobre outros, atinge o seu ponto máximo no capitalismo. O fluxo social de fazer é quebrado. O poder-para é transformado em poder-sobre. Aqueles que controlam o fazer de outros aparecem agora como os Executores da sociedade, e aqueles cujo fazer é controlado pelos outros tornam-se invisíveis, sem rosto, sem voz. O poder-para-fazer deixa de fazer parte do fluxo social, mas existe sob a forma de um poder individual. Para a maioria das pessoas, o poder-para-fazer coisas é transformado no seu oposto, em impotência, ou, na melhor das hipóteses, em poder-para-fazer o que é determinado pelos outros. Para os poderosos, o poder-para-fazer é transformado em poder-sobre, o poder de dizer aos outros o que fazer, e, portanto, uma dependência do fazer de outros. Na presente sociedade, o poder-para existe sob a forma da sua própria negação, enquanto poder-sobre. O poder-para existe na forma de ser negado. Isto não significa que ele deixe de existir. Ele existe, mas enquanto negação, em tensão antagonista para com a sua própria forma de existência como poder-sobre.

6. A ruptura de fazer é a ruptura de todos os aspectos da sociedade, de todos os aspectos de nós mesmos.

A separação do feito do fazer e dos executores significa que as pessoas não mais se relacionem como executores, mas sim como proprietários (ou não-proprietários) do feito (visto agora como divorciado do fazer). As relações entre as pessoas existem enquanto relações entre coisas, e as pessoas deixam de existir enquanto executores, passando a existir como portadores de coisas. Esta separação de executores do fazer e, por isso, de si mesmos, é variavelmente referida na literatura como alienação (o jovem Marx), fetichismo (o velho Marx), reificação (Lukács), disciplina (Foucault), ou identificação (Adorno). Todos estes termos deixam claro que o poder-sobre não pode ser entendido como algo externo a nós, mas que alcança todos os aspectos da nossa existência. Todos estes termos apontam para um endurecimento da vida, uma obstrução ao fluxo social do fazer, um encerramento de possibilidades. O fazer é convertido em ser: este é o núcleo do poder-sobre. Enquanto que fazer significa que somos e não somos, a ruptura do fazer significa que o “e não somos” é arrancado. Ficamos apenas com o “nós somos”: identificação. ”Nós não somos” ou é esquecido, ou tratado como mero sonho. A possibilidade é-nos arrancada. O tempo é homogeneizado. O futuro é agora a extensão do presente, o passado a preparação para o presente. Todo o fazer, todo o movimento, está contido dentro da extensão do que é. Pode ser bom sonhar com um mundo digno de humanidade, mas isso é apenas um sonho: isto é como as coisas são. A regra do poder-sobre é a regra de “como as coisas são”, a regra da identidade.

7. Nós participamos na ruptura do nosso próprio fazer, a construção da nossa própria subordinação.

Como executores separados do nosso próprio fazer, nós recriamos a nossa própria subordinação. Como trabalhadores, nós produzimos o capital que nos subordina. Como professores universitários, nós somos parte activa na identificação da sociedade, na transformação do fazer em ser. Quando definimos, classificamos ou quantificamos, ou quando defendemos que o objectivo da ciência é entender a sociedade tal como ela é, ou quando pretendemos estudar objectivamente a sociedade, como se ela fosse um objecto separado de nós, nós participamos activamente na negação do fazer, na separação dos sujeito e objecto, no divórcio do executor do feito.

8. Não há simetria entre poder-para e poder-sobre.

O poder-sobre é a ruptura e a negação do fazer. É a negação activa e repetida do fluxo social do fazer, do nós que nos constitui através do fazer social. Pensar que a conquista do poder-sobre pode liderar até à emancipação do que ele nega é absurdo. O poder-para é social. Ele é a constituição do “nós”, a práctica do reconhecimento mútuo de dignidade. O movimento do poder-para contra o poder-sobre não deve ser concebido como contra-poder (um termo que sugere uma simetria entre poder e contra-poder), mas, mais que isso, como anti-poder (um termo que, para mim, é uma completa assimetria entre o poder e a nossa luta).

III

9. O poder-sobre parece penetrar-nos tão profundamente, que a única solução possível parece ser a intervenção de uma força externa. Esta não é de todo a solução.

Não é difícil chegar a conclusões altamente pessimistas sobre a presente sociedade. As injustiças, a violência e a exploração gritam-nos, e ainda assim parece que não existe outra saída possível. O poder-sobre parece penetrar tão profundamente em todos os aspectos das nossas vidas, que é difícil imaginar as “massas revolucionárias” já antes sonhadas. No passado, a profunda penetração do domínio capitalista levou muitos a encarar a solução em termos da liderança por um partido de vanguarda, mas isto provou não ser de todo uma solução, visto simplesmente substituir uma forma de poder-sobre por outra. A resposta mais fácil é a desilusão pessimista. O grito de raiva inicial perante os horrores do capitalismo não foi abandonado, mas aprendemos a viver com ele. Não nos tornámos apoiantes do capitalismo, mas aceitámos que não há nada que se possa fazer contra ele. A desilusão é a queda na identificação, uma aceitação do que é; assim, uma participação activa na separação do fazer do feito.

10. A única maneira de quebrar o aparente círculo fechado do poder é vendo que a transformação do poder-para no poder-sobre é um processo que implica necessariamente a existência do seu oposto: fetichização implica anti-fetichização.

A maioria das discussões sobre alienação (fetichismo, reificação, disciplina, identificação, e por aí fora) tratam-na como se ela fosse um facto consumado. Tratam as formas das relações sociais capitalistas como se elas tivessem sido estabelecidas desde os primórdios do capitalismo e assim continuem até o capitalismo ser substituído por um outro modo de organização social. Por outras palavras, a existência está separada da constituição: a constituição do capitalismo está localizada no passado histórico, a sua existência presente é assumida como estável. Esta visão só pode levar a um profundo pessimismo. Se, todavia, nós virmos a separação do fazer e do feito não como um facto consumado, mas como um processo, o mundo começará a mudar. O facto pelo qual falamos de alienação significa que a alienação não pode ser completa. Se a separação, alienação (etc) é entendida como um processo, isto implica que o seu percurso não está predeterminado, que a transformação do poder-para em poder-sobre está sempre em aberto, sempre em questão. Um processo implica um movimento do que vem, implica que o que está em processo (alienação) é e não é. Assim, a alienação é um movimento contra a sua própria negação, contra a anti-alienação. A existência da alienação implica a existência da anti-alienação. A existência do poder-sobre implica a existência do anti-poder-sobre, ou, por outras palavras, o movimento de emancipação do poder-para. O que existe sob a forma da sua negação, o que existe sob o modo de ser negado, existe realmente, apesar das suas negações, como a negação do processo de recusa. O capitalismo está baseado na recusa do poder-para, da humanidade, da criatividade, da dignidade: mas isso não significa que estes deixem de existir. Como os Zapatistas nos mostraram, a dignidade existe apesar da sua própria negação. Não se mantém por si mesma, mas existe na sua única forma possível nesta sociedade, como luta contra a sua própria negação. O poder-para existe também: não como uma ilha no meio do mar do poder-sobre, mas na única forma em que pode existir, como luta contra a sua própria negação. A liberdade também existe, não na forma como a apresentam os liberais, como algo independente dos antagonismos sociais, mas da única maneira em como pode existir numa sociedade caracterizada pelas relações de domínio, como luta contra esse domínio. O real, a existência material do que existe sob a forma da sua própria negação, é a base da esperança.

11. A possibilidade de mudar radicalmente a sociedade depende da força material do que existe de modo a ser negado.

A força material do negado pode ser vista de várias maneiras. Em primeiro lugar, pode ser vista no número infinito de lutas que não têm por objectivo tomar o poder-sobre outros, mas simplesmente afirmar o nosso poder-para, a nossa resistência contra sermos dominados por outros. Estas tomam muitas formas diferentes, desde a rebelião aberta até às lutas para ganhar ou defender o controlo sobre o processo laboral, ou o processo de saúde ou de educação, até às mais fragmentadas afirmações de dignidade, frequentemente silenciadas, (pelas crianças ou mulheres) dentro de casa. A luta pela dignidade, pelo que é negado pela sociedade existente, também pode ser vista em múltiplas formas que não são manifestamente políticas, na literatura, na música, nos contos de fadas. A luta contra a inumanidade é ubíqua, por isso está implícita na nossa própria existência como seres humanos. Em segundo lugar, a força do negado pode ser vista na independência do poder-sobre acerca do que ele nega. Aqueles cujo o poder-para mente na sua capacidade de dizer aos outros o que fazer depende sempre na sua existência do fazer desses outros. A história completa do domínio pode ser vista como a luta dos poderosos para se libertarem a eles mesmos da sua dependência dos sem poder. A transição do feudalismo para o capitalismo pode ser vista desta forma, não só como a luta dos servos para se libertarem dos senhores, mas também como a luta dos senhores para se libertarem dos seus servos por conversão do seu poder em dinheiro e, assim, em capital. A mesma procura de liberdade por relativamente aos trabalhadores pode ser vista na introdução de maquinaria, ou na conversão massiva do capital produtivo em capital monetário, o qual tem um papel fundamental no capitalismo contemporâneo. Em cada caso, o voo dos poderosos a partir dos executores é em vão. Não há qualquer forma na qual o poder-sobre possa ser outra coisa senão a metamorfose do poder-para. Não há maneira dos poderosos escaparem da sua dependência dos sem poder. Em terceiro lugar, esta dependência manifesta-se na instabilidade dos poderosos, na tendência do capital para as crises. O voo do capital a partir do trabalho, através da substituição do trabalho por máquinas e pela sua conversão em dinheiro, está confrontado pela sua definitiva dependência do trabalho (isso é, da sua capacidade de converter o fazer humano em trabalho abstracto de valor-produção) na forma de fazer cair as margens de lucro. O que se manifesta em crise é a força do que o capital nega, nomeadamente a não subordinação do poder-para-fazer.

12. A revolução é urgente mas incerta, uma questão e não uma resposta.

As teorias marxistas ortodoxas procuraram ganhar convicção sobre o lado da revolução, argumentando que o desenvolvimento histórico leva inevitavelmente à criação da sociedade comunista. Isto é um equívoco fundamental, porque não existe nada seguro sobre a criação de uma sociedade autodeterminada. A certeza só pode estar do lado do domínio. A certeza é encontrada na homogeneização do tempo, na cristalização do fazer em ser. A autodeterminação é inerente à incerteza. A morte das velhas certezas será bem-vinda como uma libertação. Pelas mesmas razões, a revolução não pode ser entendida como uma resposta, mas apenas como uma questão, como uma exploração na criação da dignidade. Questionando caminhamos.


Nota: Este conteúdo está integralmente desenvolvido no livro “Change the world without taking power”, Pluto Press, Londres, 2002


Tradução por NA

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