5 de novembro de 2011

Imprensa, delusão e poder

Todos sabemos como operam os grupos que controlam o poder político quando querem agir contra alguém ou impor uma decisão que sabem não merecer a adesão imediata das populações que governam: lança-se uma campanha onde todos os meios são usados, da imprensa à publicidade institucional, e, ao fim de algum tempo, a decisão que se quer tomar deixa de ser controversa, podendo mesmo ser desejada e exigida. É assim para tornar fácil o despedimento dos funcionários públicos, aprovar sem problemas os cortes na saúde e na educação, mascarar o trabalho escravo (trabalho obrigatório sem remuneração, como quer o governo português), isolar Hugo Chávez, bombardear a Líbia, reprimir uma manifestação ou tornar natural a nomeação de um regente que tutela um governo fantoche (veja-se a proposta do nova pacote de austeridade para a Grécia).

Contudo, persiste um mistério: por que razão funciona um método velho e conhecido por todos? Há duas respostas intuitivas. A primeira é a estupidez – as pessoas são estúpidas! E algumas serão, ou sê-lo-ão mesmo muitas, mas será essa a razão? Não conhecemos todos gente inteligente e de bastante boa erudição a defender coisas contrárias às suas convicções e que vão no sentido do acatamento das ordens da Ordem dominante, coisas como a esperança de que o voto em eleições legislativas tenha alguma eficácia como barreira aos avanços dos senhores do mundo? A estupidez pode fazer parte da resposta, mas não será por aí que o gato vai às filhoses.

A segunda resposta intuitiva é a da manipulação: somos manipulados pela imprensa! A tese da manipulação, contudo, exige a ausência de autonomia cognitiva; ora, como vimos acima, as pessoas são capazes de se dar a si próprias razões para agir que contrariam algumas das suas crenças e são independentes das razões que determinam as acções dos poderosos. A eficácia das ordens emitidas pela Ordem parece, pois, não ser um fenómeno de simples manipulação: ela exige a pré disposição dos alvos dessas ordens para agirem de determinada maneira.

Os candidatos naturais são a tendência pré-humana para a cooperação (porque os animais que cooperam têm vantagens adaptativas) e a linguagem, que é imediatamente produtora de instituição e, por conseguinte, de distribuição do poder disponível. Isto faz com que o comportamento dos indivíduos em comunidade seja marcado pela intenção de preservação do comum. Há, portanto, um “nós”, imediato que leva à consideração daquilo que é percebido como podendo ser aceite pelo maior número; e é aqui que deve ser procurada a chave para compreender a eficácia da propaganda.

A chave do problema reside, portanto, nos elementos constitutivos da cultura comum de uma determinada comunidade: são esses elementos que a imprensa (e todos nós) reproduz até à exaustão que explicam tanto o carácter das instituições produzidas como as decisões morais e políticas dos indivíduos, as quais se tomam sempre de acordo com aquilo que se percebe favorecer o bem comum.

A reprodução deste género de crenças na imprensa, seja em discursos opinativos seja no corpo de notícias, não exige uma particular maldade por parte dos jornalistas; trata-se apenas de comunicar na linguagem aceite tacitamente por (quase) todos – a crise emerge quando a linguagem do poder já não é a dos cidadãos e novas instituições são exigidas. A reprodução acrítica dessas crenças conduz ao empobrecimento do pensamento e à transformação de uma crença injustificada numa verdade natural e evidente. E é para protecção dessa verdade natural e evidente que o jornalista aceita mentir voluntariamente - esta tendência (aceitação e reprodução da mentira – daquilo que se sabe não ser verdade) é acentuada pelas escolhas feitas pelos empregadores, pelo medo do despedimento, pelas condições de exercício da profissão, etc.

A reprodução (e produção) da mentira ocorre sob muitas formas, do boato à insinuação passando pelo silêncio ou os comentadores/cronistas convidados, umas mais fáceis de identificar que outras – quantos dos que me estão a ler não embarcaram no “Kadhafi ditador louco e genocida” ou no “Hugo Chávez ditador populista e inimigo da liberdade de imprensa?” (esta foi antes do Magalhães), quantos não aceitaram a propaganda da Otan e garantiram o iníquo silêncio e o apoio de quase toda a esquerda, e não apenas da institucional, aos motivos apresentados para a guerra e, pura abjecção, à própria forma como Kadhafi foi assassinado a mando de Paris e Washington – mas não nos deteremos em exemplos, uma vez que o nosso interesse principal vai agora para a identificação dos tais elementos de cultura comum que, reproduzidos diariamente e durante anos e anos a fio, tornam possível (ou mesmo, louvável) a reprodução por uns e a aceitação por outros das mentiras convenientes ao exercício do vil ofício de dominar.

As crenças básicas produtoras e protectoras das nossas instituições são tais como: - a democracia é ter partidos e transferir para eles o poder de x em x anos; - as coisas funcionam melhor quando há um patrão (na versão mais generalista, “é preciso alguém que mande”); - que determinados indivíduos não podem ser sujeitos às mesmas obrigações sociais que os outros; - a autoridade dos peritos (os economistas falam de economia, os políticos de política e os outros batem palmas); - que a liberdade de imprensa se reduz à possibilidade de fundar um jornal; - e a aceitação de que os seus conteúdos devem ser determinados pelos proprietários; - a ideia de que o capital gera o trabalho, em vez de ser o trabalho a gerar o capital; - o sucesso como critério da moralidade; - a divisão do universo em círculos de exclusão: 1º a família e os amigos, depois a região, a nação, o continente, a cor da pele, os hábitos musicais, de alimentação, etc.

Enfim, cada um dos leitores poderia acrescentar umas quantas crenças mais (falsas todas elas), exemplos perfeitos do modo trivial de pensar e reconhecidamente construtoras da realidade social.

Para terminar um texto que já vai longo, gostaria apenas de juntar dois ou três exemplos pescados em jornais, sobretudo nos desportivos, por ser consenso que neles não se trata de política:

Metáforas como “faltou um patrão à equipa” ilustram bem o que foi dito acima, mas também coisas como o espaço e o destaque (na análise feita aos desempenhos individuais dos intervenientes de um jogo de futebol) dado aos jogadores das equipas mais fortes ou a crítica dura dirigida a uns, os “carregadores de piano”, em contraste com a tolerância subserviente para com outros, “os artistas”, “a alegria do povo”, exigindo a punição dos primeiros por “quebrarem a disciplina táctica, fragilizando a equipa” e reivindicando a impunidade total para outros, que não devem ser submetidos, “manietados pela táctica porque servem melhor os interesses da equipa”.

Mas, de todas as metáforas usadas pelos meios de comunicação, isolo uma das mais delirantes, habitualmente na boca ou na pena de todos os que pontificam nos chamados “meios de comunicação de referência”: défice democrático!

O que este termo mascara é a arbitrariedade do poder, ao mesmo tempo que nega a evidência do seu carácter essencial: o poder disposto em cascata resulta sempre e necessariamente em prepotência. O seu contributo para a cultura comum é a crença de que temos democracia se tivermos partidos e votos de tanto em tanto tempo, o resto é tudo uma questão de pessoas. Portanto, a corrupção não é intrínseca, são uns rapazes maus que andam por aí, nós só temos de acertar no tipo certo, e a liberdade política não é participar nos negócios do estado, mas escolher aqueles que, em nosso nome, decidem arbitrariamente sobre o que deve ser feito por todos ou quem deve morrer.

Como facilmente se vê, todas estas metáforas estão carregadas de ideologia, da ideologia do poder, todas exprimem elementos da cultura comum e estão na base da cruz que a todos crucifica.

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