9 de abril de 2012

Neoliberalismo, onde está a saída de emergência?


É bastante amplo o consenso quanto à caracterização do que chamamos neoliberalismo como a intenção de desmantelamento das limitações impostas ao Capital pelo estado social construído no pós-guerra e pelas lutas de libertação anti-colonialistas, procurando repor o princípio do “mercado livre”.

O êxito desse projecto deve-se acima de tudo ao entusiasmo com que os partidos da social-democracia (os da Internacional Socialista incluídos) o abraçaram, com destaque para os blairistas, cujo vírus da terceira via insuflou de felicidade todos os escroques e oportunistas habitualmente reunidos em torno dos partidos do meio e transformou em preconceito político a ideia de que não há alternativa ao mercado como forma de organização da sociedade. O consenso gerado atingiu mesmo sectores habitualmente vistos como anticapitalistas, resultando daí que o neoliberalismo não tenha enfrentado qualquer grande batalha para se impor.

A caracterização da crise como crise financeira parece alcançar o mesmo amplo consenso, formado em torno de duas ideias de senso comum: a intocabilidade do mercado e a necessidade de apertar o cinto; donde a única solução proposta seja a rápida reconstrução do sistema financeiro. Mesmo a chamada esquerda, pelo menos a parlamentar, ilude o carácter sistémico da crise opondo aos cortes e privatizações uma auditoria que racionalize… os cortes e as privatizações.

A possibilidade de uma política diferente depende da construção de um consenso diferente, capaz de insuflar o desejo de viver de outra maneira e produzir outras soluções, o que sugere a necessidade de saber em que ideias assenta a narrativa neoliberal.

O ideólogo neoliberal tem horror à interferência do estado no modo como os indivíduos dispõem da sua propriedade (a propriedade colectiva é vista como uma limitação da liberdade individual), deplora a regulação dos mercados (que se auto-regulam) e glorifica o direito dado por Deus a cada um de aumentar o seu poder e a sua riqueza pessoais. Como consequência, o interesse privado sobrepõe-se ao da comunidade, a qual desaparece para dar lugar ao indivíduo e, ocasionalmente, à família. A própria sociedade deixa de existir e, como garante o guru Hayek, o bem comum não existe ou não pode calcular-se: “Não existe tal coisa como sociedade. Há apenas o indivíduo e a sua família.” (Friedrich Hayek, Capitalism and freedom, prefácio à edição de 1982).

Esta pérola de Hayek é pescada directamente na pseudo-ciência de Huxley (fundador do chamado darwinismo social, que adopta a linguagem de Darwin para argumentar a favor de Hobbes, oferecendo-lhe uma aparência de cientificidade), o qual escreveu, na página 165 do seu Nineteenth Century, que, “além das relações limitadas e temporárias da família, a guerra hobbesiana de cada um contra todos era a condição normal da vida”.

Ignorando que a sociedade é anterior à própria humanidade e não depende do “pacto social” – aliás, qualquer coisa como um “pacto social”, só no quadro de uma sociedade pode ser compreendida -, eleva-se um preconceito ideológico (a luta impiedosa por vantagens pessoais) a princípio biológico. Esse preconceito assenta praça em todos os ramos da ciência e torna-se indiscutível: a luta de todos contra todos é o princípio essencial da natureza - diz a biologia que é o modo pelo qual se dá a evolução do mundo animal; a história, que é feita pelos vencedores (não reza dos fracos); a economia, que o progresso depende da competição; a religião abençoa os vencedores que praticam a caridade, também ela, à sua maneira, glorificando o individualismo (a comunidade dá-se em Cristo, não no mundo); a arte de massas tem como herói o macho alfa que bate em todos e derrete o coração das fêmeas (a quem trata com desprezo) e até a filosofia política não vê como pode a democracia ser possível senão como sucedâneo mal-amanhado de uma forma aristocrática de governo. Ora, a sociabilidade natural dos humanos e a sua tendência para agir moralmente tornam-se evidentes quando pensamos que, se cada indivíduo abusasse sistematicamente das suas vantagens pessoais nas suas relações com os outros indivíduos e ninguém manifestasse disponibilidade para ajudar os carenciados, não haveria vida social (e para fazer um são precisos dois). Mesmo sem lupa, é possível ver que o individualismo é um produto recente e que, apesar de todos os esforços dos tiranetes e seus lacaios, a sociabilidade e a tendência para agir moralmente persistem e se reforçam, manifestando-se exuberantemente por todo o mundo.

Portanto, na ficção neoliberal, buscar a felicidade sem considerar as necessidades dos outros é o melhor caminho para a igualdade e a felicidade de todos (reza assim o credo segundo S. Smith, para quem a “mão invisível” – de Deus – se encarregará da justiça: no problem, just business), e se até a escravatura já foi abolida e todos somos livres e iguais, só é pobre quem quer, quem cede aos vícios e não quer trabalhar, os malandros que subsistem à custa do erário público, dos impostos dos trabalhadores honestos (e não estamos a falar de deputados, edis, ministros ou similares). Assim sendo, mercados abertos competitivos e desregulados são o ambiente ideal para o progresso moral e material da humanidade, a todos colocando no mesmo plano, o mesmo exigindo a todos, ricos ou pobres. Por isso, deve observar-se a relação ditada por Deus e pela natureza entre a satisfação das necessidades sociais e a capacidade para as pagar. Corrigir as assimetrias sociais só serve para diluir a responsabilidade individual e gerar uma nação de gente fraca, incapaz de aumentar os lucros, de gerar capital, de fazer a guerra. Por isso, o estado deve limitar-se a garantir as condições para a competição. E assim o “estado social” é substituído pela “economia social de mercado”, como está escrito nos tratados e, por isso, é lei, determinando que se eliminem as barreiras aos negócios, como as leis laborais que protejam o emprego ou os serviços públicos de educação, saúde e justiça.

O planeta neoliberal é habitado por indivíduos regidos pelo lema “propriedade, liberdade e igualdade”; um planeta de proprietários (porque cada um pode dispor do que é seu) livres (de fazer transacções comerciais sem entraves) e iguais (porque proprietários trocando equivalente por equivalente), independentemente das condições em que cada um existe, de como se fixam as equivalências ou outras considerações que atrapalhem os negócios. Segundo o ilusionista neoliberal, todos somos livres e iguais porque o somos em abstracto, mesmo se uns são mais livres e mais iguais que outros, se a liberdade e a propriedade são para os de cima e a disciplina e a autoridade ficam reservadas para os de baixo.

Conhecido o neoliberalismo, torna-se necessário encontrar a saída de emergência, e essa é a nossa tarefa colectiva, mesmo quando não sabemos muito bem o que fazer. Para outro dos gurus liberais, Milton Friedman, as medidas com que se enfrenta uma crise dependem das ideias disponíveis, mas eu diria que dependem também e muito mais, ou pelo menos em igual grau, das práticas sociais que, já existentes, possam ser reconhecidas como possíveis e desejáveis. Práticas sociais que constituam as fundações de um futuro livre e fraterno, onde todos possam ser igualmente considerados na gestão da coisa pública.

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